Quero ser compositor - Parte 6
Canção é uma história musical. Deve ser costurada com o mesmo capricho de quem narra um conto ou um romance
Para seguir
com o processo de criação da minha canção, precisei de outros instrumentos além
do violão: meu caderno de anotações e a caneta esferográfica. Não sei precisar quantas
páginas consumi com rabiscos, tentativas de versos e anotações. Nem percebi o
tempo passar enquanto desenhava as características do personagem central que protagonizaria
minha história musical.
Compreendi
que o personagem não falava sério quanto a “sofrer de amor”, afinal, no verso seguinte
ele sentenciava: “Logo eu, quem diria?” Era como se o sujeito estivesse pronunciando
um desabafo, uma espécie de lamento por ter caído numa armadilha amorosa; algo que
não poderia ter acontecido com alguém como ele. Fiquei curioso para saber por
quê – e feliz, pois acreditei que os ouvintes, tomados pela mesma curiosidade, teriam
motivação para continuar atentos.
Visualizei
meu personagem como um mulherengo, cínico e malandro. Um gaiato, acostumado a
abordar as mulheres com galanteios, crente que é imune às paixões e que jamais
se envolverá em um relacionamento sério. Um sujeito assim não poderia estar
desabafando para si mesmo. Ele tinha que estar diante de um interlocutor. Mas
quem?
Poderia ser
um amigo confidente, ou algum conhecido, com o qual costumava dividir mesas de
bares. Ou então seriam vários conhecidos – uma turma de amigos que se reúnem com
frequência! Não... isso não combinava com o personagem que tinha em mente. Ele
era um predador solitário, alguém com elevada autoconfiança, que saia à noite para
caçar as mulheres incautas.
A partir
desse raciocínio, comecei a imaginar uma ambientação para a minha história
musical: seria um bar, movimentado e agitado, com música ao vivo. O
protagonista estaria numa mesa mais reservada, acompanhado da morena que
pretendia abater. O desabafo que deixava escapar era o prenúncio da sua cantada.
Pronto! Estes
seriam os personagens da minha canção: o malandro galanteador e a morena
brejeira. Agora que já sabia com quem estava lidando e em qual ambiente a ação
se desenrolaria, tentei raciocinar musicalmente, procurando dar um formato para
minha canção. Imaginei-a como tema de algum personagem de telenovela, daquelas
que invariavelmente se passam no Rio de Janeiro e se dedicam a esmiuçar os
relacionamentos amorosos.
De cara
percebi que a minha criação só funcionaria se fosse sintética. O personagem
central, o malandro, só poderia revelar-se o suficiente para caracterizar sua
malandragem. A morena se limitaria a ouvir e a se envaidecer com a cantada que
estava recebendo.
Empolgado,
larguei a caneta sobre o caderno e corri para o notebook. É lá que me sinto
mais à vontade para editar meus textos, pois consigo manter a limpeza e a organização.
Algumas xícaras de café depois – e uns quarenta minutos de concentração – tinha
em mãos as estrofes da letra. As ideias fluíram com facilidade e a inspiração me
trouxe versos curtos e concisos, com uma métrica redonda e bem definida. Gostei
do resultado. Mas minha canção ainda não tinha um refrão. E muito menos uma
melodia!
O casamento da letra com a melodia
Foi uma
proeza e tanto para um final de semana, mas com a segunda-feira vieram também
os compromissos profissionais e a necessidade de deixar o processo de criação
em stand by. Dali em diante, só
poderia trabalhar na minha canção à noite. Foi o que fiz quando cheguei do
trabalho. Abracei-me ao violão com as ideias ainda frescas na cabeça e a firme
decisão de concluir minha obra musical.
Já sabia o
começo da canção, mas ainda não tinha uma trilha tonal para seguir. Antes,
porém, precisava estabelecer uma melodia. Fiz como sempre costumo fazer: fui
digitando linhas melódicas em uma região confortável para cantar. Como já tinha
os versos, foi fácil vocalizá-los. Tentei manter uma prosódia muito próxima da
fala, o que além de salientar a “conversa” entre os personagens, trouxe mais
naturalidade à melodia.
Os três
primeiros versos da primeira estrofe seguiam a mesma métrica, por isso ganharam
a mesma frase melódica. Confesso que, num primeiro momento, isso me trouxe
certo incômodo – repetir a fórmula pela terceira vez em sequência... talvez
deixasse o ouvinte entediado. Mas, como estava compondo uma bossa nova, entendi
que isso não seria um problema. Basta ouvir algumas canções do gênero para
perceber que as melodias simples e repetitivas são marcantes. A roupagem
harmônica, entretanto, é mais elaborada, e veste a melodia com requinte e
sofisticação. Teria que seguir esta fórmula consagrada.
Harmonizando os versos
Para os
iniciados, tentarei descrever o processo de harmonização, que é bastante
simples. A melodia que inventei se encaixava na tonalidade de G. Depois dos
dois versos iniciais, que já havia harmonizado, estava em repouso no acorde de Bm.
Então pensei:
– Preciso tonalizar
de uma vez, para que o ouvinte perceba onde estou pisando.
Então, fui
direto para o acorde dominante do tom, que é o D7. Pronto! Em seguida bastou
seguir até o G7M para repousar. Letra e música funcionaram bem! A palavra “cinema”
é cantada sobre o acorde de sétima maior, que na minha opinião oferece uma
luminosidade feérica, ressaltando assim o caráter matreiro do personagem que
tentava descrever. Meu raciocínio me levou para a seguinte direção:
– Seria legal
se a palavra “poema” também fosse cantada em cima de outro acorde de sétima
maior.
Tentei ir
para o quarto grau, o C7M, que também é de sétima maior, mas não encaixou.
Tentei algumas inversões desse acorde, mas não teve conversa. Minha
desenvoltura com harmonia não era das maiores, o que transformou a busca num
processo demorado e repetitivo. Num dado momento, cantei a palavra “poema”
sobre um D7M e gostei do resultado. As notas F# e D, que antes eram a sétima
maior e a quinta do G7M, viraram terça maior e tônica do D7M. O brilho se
manteve e a sensação de repouso foi um pouco diferente.
Para sair do
G7M e chegar no D7M, bastou prepará-lo com o acorde de A7, sobre o qual cantei
a palavra “de”. Confesso que, nesse momento, não gostei do resultado. Na minha
opinião o A7 criou uma atmosfera muito mais próxima do samba. Mas, como pretendia
compor uma bossa nova... precisei quebrar a cabeça! Tentei adicionar algumas
tensões sobre esse acorde dominante, para conseguir uma dissonância mais
atraente. Depois de várias tentativas, a que funcionou foi a décima terceira. Com
o tempo, ao invés do A7(13), passei a usar o A6, porque gostei do timbre da
minha voz sobre esse acorde, que é uma inversão do F#m7 – uma questão de gosto!
Para o
próximo verso, a ideia era simples: voltar para o G7M, onde terminaria a
palavra “acordado” repousado na tonalidade de G. Para chegar nele, só
precisaria prepará-lo com o D7. Mas, de novo, a sonoridade do samba entrou
áspera nos meus ouvidos. Lá se foram outras dezenas de minutos em busca de
tensões, dissonâncias e inversões.
Encontrei a
sonoridade que desejava quando digitei o acorde de Bm7. Ou seja: usei a
relativa do acorde de D7M, onde estava em repouso, como ponte para chegar no
G7M. Como o Bm7 também é o terceiro grau da tonalidade de G, essa passagem não
foi feita com a tensão típica do samba. Ao contrário, criou um efeito
interessante: a sílaba “a”, cantada sobre o Bm7, sou como um bocejo e criou um oportuno
estranhamento com a palavra “acordado”.
Vibrei quando
percebi que estava conseguindo gerar uma interação entre a letra e melodia.
Estava nascendo uma canção!
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