Quero ser compositor - Parte 7
O processo criativo constrói uma teia de raciocínios que, num dado instante, captura uma sacada emocional
Já observei músicos
tarimbados torcendo o nariz para os acordes com sétima maior. Alguns os
consideram demasiado clichês, com sonoridade estereotipada e melosa. Outros já
me disseram que se trata de uma solução fácil e vulgar quando se deseja criar um
certo clima... Ora! Mas não é justamente isso que devemos buscar em uma canção?
Certos climas? Certas atmosferas?
Sem me
incomodar com os cacoetes dos profissionais, executei um volumoso acorde de C7M
– o quarto grau da tonalidade de G – para interromper o ciclo de repetições da
minha melodia e preparar o que seria uma espécie de ponte para o refrão. Depois
dele, cantei o verso:
– E brincando
no teclado...
O resultado
me agradou. Consegui impor um certo suspense, abrindo a passagem para o verso
seguinte, que seria cantado com a mesma melodia:
– Diz que é
compositor...
Mas qual
seria o próximo acorde? A solução, desta vez, surgiu muito rápido. Bastaria voltar
para o Bm7(11), que foi a célula-mãe da canção. O acorde que despertou todo o processo
criativo e desencadeou a enxurrada de ideias que me arrastou para o sofá e agora
me colocava abstraído e extasiado.
Descansei o violão
no encosto de uma das cadeiras da sala e me dei por satisfeito. Tinha uma letra
concisa, uma história que se desenrolava com fluidez, uma melodia fácil de ser
cantada e uma progressão harmônica coerente. Mas faltava o refrão.
Ah, o maldito
refrão! Não fazia ideia de como cria-lo. Não tinha a letra, não tinha a
melodia, não tinha nada! Tinha, sim, que ir dormir, porque havia agendado uma
reunião com clientes logo pela manhã. Trabalho remunerado em primeiro lugar!
A voz interna é a voz do compositor
Por falta de
tempo, só voltei a trabalhar na minha canção alguns dias depois, o que não
aconteceu com os violão em mãos. Precisei empreender um esforço racional na
frente do computador. Para inventar o refrão foi preciso retomar o processo
criativo desde o começo, revisitando o briefing que impus a mim mesmo. E bastou
uns vinte minutos de concentração para ser atingido por um estalo criativo. Percebi
que a expressão “logo eu” continha toda a essência da canção. Essas duas
palavrinhas tinham que estar presentes no refrão.
– Mas que óbvio!
– deixei escapar em voz alta.
Digitei os
versos que me vieram em seguida: “Logo eu, logo eu / Que ironia”. Sim,
funcionou muito bem! O personagem principal chegava no auge do seu desabafo,
revelando que, na verdade, não estava a lamentar a intensidade do seu
sofrimento amoroso, mas sim o fato de ter caído em uma espécie de armadilha –
logo ele que se julgava imune às mazelas do amor.
Agora só
precisava arrematar com uma frase conclusiva, retumbante e arrebatadora. Como
se tratasse de tarefa fácil.
Passei outra
semana à procura da tal frase. Caminhava pelas ruas cantarolando minha canção –
que já possuía os versos, uma ponte e um quase refrão – na esperança de que
algum achado me premiasse com o final da minha agonia. Processos criativos são
assim mesmo: demorados, repletos de idas e vindas e sobretudo angustiantes. Já
passei por momentos como esse, mas sempre pressionado pela responsabilidade profissional
de encontrar respostas para problemas comerciais que não eram os meus, e sim
dos meus clientes. Agora, as cobranças vinham de uma voz interna, ainda mais
exigente.
Por diversos
momentos tentei incorporar o personagem e imaginar os detalhes da ambientação
onde a cena do meu conto musical se desenrolaria. E fiz isso nos momentos e nos
locais mais inusitados. Foi na fila do caixa eletrônico que finalmente entendi:
a frase final do refrão precisava remontar ao início da canção. Tinha que
mencionar novamente a expressão “sofrer de amor”.
Visualizei o
sujeito jogando charme para a sua “deusa descabida”. Num tal momento, o que
mais ele poderia fazer senão enaltecer as qualidades da sua diva? Ele teria que
encher a bola da garota, lisonjeá-la... De repente, no meio de toda essa teia
de raciocínio, minha mente aprisionou a frase “a fila anda” – uma expressão
idiomática que caiu no gosto popular e é aplicada às mulheres que não sofrem
com o término dos seus relacionamentos amorosos, pois seus pretendentes são
tantos que fazem fila. Foi o insight que precisava! Já tinha uma métrica clara
na cabeça, bastou costurar os versos: “Esse cara vacinado / Aqui plantado nessa
fila / Pra sofrer de amor”.
Ao se apresentar
como um “cara vacinado” o protagonista finalmente revela suas reais intensões.
É um sujeito cheio de si, que se anuncia como experiente no amor. Ao mencionar
uma fila de pretendentes que se forma atrás daquela que está tentando
impressionar – ainda que essa fila nem exista – mira em cheio no ego da sua “deusa
descabida”.
Cheguei a
imaginar a reação da moça. Será que a cantada vai colar? O final do meu pequeno
conto ficaria em aberto, mas, pensando na atmosfera que um bom intérprete empreste
à canção, aposto que o protagonista acaba furando a fila!
Saí do caixa
eletrônico transbordando de felicidade. Tinha o refrão definitivo, perfeitamente
encaixado na melodia e pronto para ser musicado. Mas o que me faltava era tempo
para continuar meus devaneios criativos. Precisei esperar até o sábado, quando
estaria o dia inteiro em casa, para concluir a canção.
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