Quero ser compositor - Parte 1
A música nos atrai desde a infância, mas a falta de estímulos afasta, até que viramos analfabetos musicais
Gosto de
música. Sou fascinado por ela desde sempre. Ainda pequeno, um pirralho,
abraçava o violão do meu tio e dedilhava, em uma única corda, a melodia de
Roda-viva, do Chico Buarque. Com o indicador da mão esquerda apertava os
trastes, enquanto pinçava a corda mais fininha com o polegar da mão direita.
“Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu...”
Todos achavam
bonitinho... e só! Ficou por isso mesmo. Em pouco tempo o violão deixou de ser
instrumento musical e virou brinquedo que já perdeu a graça. Se dependesse do
pirralho, envelheceria, criando poeira no encosto do sofá.
Hoje, com quase 60 anos, sei que essa
é uma história banal, vivida por muita gente – com chances maiores de se
repetir aqui no Brasil, onde damos pouquíssima importância à educação musical
das nossas crianças. Temos contato com os sons antes mesmo do nascimento e
crescemos ouvindo música o tempo todo, mas só alguns aprendem a lidar com ela. Acredito
que é porque cultivamos a noção de que só os talentosos, dotados de inata
capacidade de compreender a música, são abençoados com a possibilidade de se
relacionar com ela; de fazer parte do seu círculo íntimo. Considero privilegiados
de verdade aqueles estimulados a desenvolver suas aptidões musicais desde a
tenra infância.
Se bem que nós,
brasileiros, especialistas em extravasar a veia criativa e esbanjar desinibição,
fizemos fama como uma sociedade musical, que ao invés de trilhar os caminhos da
sua história, prefere... desfilar! Seguimos dançando e cantando, orgulhosos do
nosso talento de músicos intuitivos. Temos a música no sangue e a ginga no pé. Além
disso, nossa indústria musical é impressionante! Dinâmica, diversificada e
profissional. Só tenho motivos para me orgulhar dela, porém, devo confessar, só
a conheço na superfície. Sempre a observei pelo lado de fora, sem instrumentos
que me permitissem exercer a crítica com propriedade.
Mas não é dessa
indústria que pretendo me ocupar. Tenho interesse em desvendar a música que
está no ar, que tamborilamos distraídos, que assoviamos de felicidade, que
gruda na memória como chiclete na sola do sapato. Tenho interesse em entender a
música, porque, como disse, sou fascinado por ela desde sempre.
Um ambiente musical faz a diferença
Na infância,
vivia numa família numerosa, repleta de cantores e violonistas intuitivos. A
enorme diversidade de gostos e influências foi a oportunidade para ouvir e
apreciar diferentes gêneros de música popular.
Imitando meus
tios, mantinha um “caderno de música”, onde copiava as letras das canções que
chamavam minha atenção: A Banda, Roda-viva, Ponteio, Alegria Alegria... Minha
preferida era, vejam só, Funeral de um Lavrador, composta pelo Chico Buarque
sobre o poema de João Cabral de Melo Neto – uma canção triste, grave e
profunda, cujo significado não apreendia. O que me alcançava era a pura
música.
Quando
copiava canções do caderno de algum tio, era frequente encontrar códigos em
cima de certas palavras. Alguém me explicou que eram “posições no violão”. Como
não me faziam sentido, apenas as ignorava. O tempo passou, o caderno de músicas
foi esquecido e acabou se perdendo.
Lá pelos
treze ou catorze anos, voltei a me interessar pelo violão. Quando alguém me deu
um exemplar do famoso método do Paulinho Nogueira, meu irmão Dennis e eu
imediatamente começamos a arriscar os primeiros acordes. Dó, Ré, Mi, Sol, Lá,
Si... Tudo com muita insistência e muita dedicação. Lembro que foi preciso
superar o desafio das irritantes pestanas para conseguir fazer o Fá.
Num belo dia,
um dos meus tios me ensinou o “quem quer pão”: o polegar tocava as três cordas
de cima, enquanto os dedos indicador, anelar e médio cuidavam das três cordas
de baixo. Em pouco tempo já estava dedilhando.
Foi muito
fácil decorar as cifras e rapidamente começamos, meu irmão e eu, a colecionar
revistinhas que traziam incontáveis canções. E essa, confesso, foi a totalidade
da minha formação musical. Nada de teoria, nada de complicação. Apenas a boa e
velha prática.
Depois de
muito ver e ouvir meus tios tocando, e de exaustivas práticas diárias,
conseguia executar diversas canções. Encontrei no violão uma grande diversão e
um grande passatempo. Nunca me preocupei em executar performances para plateias.
Para os ouvintes ocasionais, fazia questão de deixar claro:
– Só toco por
brincadeira, viu?
Para meu
irmão, dois anos mais novo, essa aventura foi só o começo. Decidido a abraçar a
carreira de músico, praticou, estudou, desenvolveu seus talentos e se tornou
músico profissional. Quanto a mim, enveredei pela publicidade e fui ganhar a
vida em outras praias, em empregos regulares, bem longe da música.
O problema é
que ninguém consegue viver longe da música! Continuei sendo um colecionador de
discos, um apreciador atento e um violonista curioso. Desde os meus catorze anos,
nunca deixei de ter um violão por perto, mas sempre toquei “só por
brincadeira”. Colecionei revistinhas com cifras e toquei nas rodinhas de violão
durante as festas. Nunca venci a timidez, mas sempre me diverti brincando com a
música.
Brinquei
despudoradamente. Na adolescência me arrisquei, dando uma de compositor, mas não
consegui inventar nenhuma canção digna de ser considerada como tal. Na
faculdade, debochado, cheguei a inventar canções bem-humoradas e
descompromissadas. Puras gozações sem importância, que foram esquecidas com o
tempo. Música não era para ser levada a sério.
Em paralelo,
por meio do cinema e da televisão, percebia que nos países desenvolvidos as
famílias tratavam a educação musical com certo respeito; a cultivavam dentro de
casa com rotineira seriedade. Lá fora, eles tinham a linguagem musical como uma
forma de expressão, que engrandecia e enobrecia. Todos sabiam ler partituras e
estudavam música na escola regular, enquanto aqui estávamos condenados ao
analfabetismo endêmico. Lá fora, o instrumento mais importante e sublime era o
piano, enquanto aqui o violão era para quem não entendia nada de música.
Foram esses
preconceitos, postos na minha mente com persistência subliminar, que me
distanciaram da música. O fazer musical passou a ser uma arte difícil,
trabalhosa e proibitiva. Terminei por perceber qual era, afinal, o meu lugar
nesse mundo da música: tinha que ficar do lado de cá da fronteira, no espaço
reservado ao público apreciador, cuja única função é aplaudir. O lado de lá,
destinado aos fazedores de música, era permitido apenas ao seleto grupo dos
iniciados e detentores dos misteriosos e insondáveis conhecimentos musicais.
Estudar música por conta própria
Ao longo dos
anos, conheci muita gente que manteve esse mesmo relacionamento com a música e
com o violão. Gente que toca só por brincadeira e faz da música um divertido
exercício de pura intuição; atitude que, imagino, seja assumida com mais
espontaneidade pelos anglófonos, tão acostumados a conjugar o verbo to play na hora de fazer música. Nós, os
lusófonos, temos a obrigação de tocar, o que soa como algo mais grave e
ritualístico.
Depois de
velho, desfiz-me dos preconceitos – ao menos daqueles que consegui reconhecer –
e resolvi dar outra chance aos impulsos criativos. Decidi que precisava fazer
música. Compor canções. Inventar! Fazer o que devia ter feito quando era
adolescente, mas não sabia fazer.
Milhões de
barreiras imediatamente surgiram ao meu redor. Muitas delas imensas: falta de
conhecimento, excesso de idade, pouco tempo disponível, coisas mais importantes
para fazer... Isso sem falar na quantidade de talento que é preciso
desenvolver!
Continuei
autodidata. Hoje em dia, com a internet à disposição, ficou fácil aprender
sozinho. Mas também investi nas aulas particulares de violão, já que as escolas
de música pipocaram por todos os cantos. Em pouco tempo aprendi os principais
tópicos da teoria musical, o suficiente para tirar várias canções e formar um
repertório focado na MPB.
De tanto
ouvir música, decidi passar a fronteira que separa os passivos expectadores dos
privilegiados produtores culturais. Na calada da noite, aproveitando que não
havia ninguém olhando, pulei para o lado dos fazedores de música popular. Mas,
sem visto, circulo na clandestinidade. Se me pegarem... paciência!
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