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A Festa de Babette: quando o alimento ganha significado para o espírito

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A Festa de Babette: filme dirigido por Gabriel Axel UM FILME MADURO, REALIZADO COM GRANDE COMPETÊNCIA ARTÍSTICA Ah, como é bom ser humano! Poder aproveitar por inteiro os nacos de realidade que nos chegam por meio dos cinco sentidos. Ter essa capacidade de atribuir significados a tudo o que vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos e degustamos. Compartilhar nossa humanidade e cultivar relacionamentos por meio das experiências que temos em comum com todos os demais humanos. É daí que decorre a arte – na verdade, todas as sete: arquitetura, escultura, pintura, música, dança, literatura e cinema. Mas espere aí! Quem disse que a arte precisa estar submissa à ditadura da visão e da audição? Há muito material artístico para ser fruído por meio de outros sentidos, como por exemplo, o paladar. É disso que nos fala o filme A Festa de Babette , escrito e dirigido em 1987 pelo dinamarquês Gabriel Axel.           O filme ficou consagrado como uma ode à gastronomia e foi a primeira produção dinamarquesa

Rota Selvagem: no final, é um filme sobre o abandono e a solidão

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Rota Selvagem: filme dirigido por Andrew Haigh CINEMA MADURO E COMPETENTE, ABORDANDO UM TEMA DIFÍCIL E PENOSO – Descobri um ótimo filme pra gente assistir agora – fui avisando enquanto entrava no quarto de supetão, pegando Ludy de surpresa. Ela tirou os olhos do livro que estava lendo e me encarou, à espera de algo que a surpreendesse. Então, anunciei solene: – Rota Selvagem !           – Rota Selvagem ? Fala sério! – retrucou Ludy, voltando os olhos para o livro. – Não estou disposta a encarar um filme violento, cheio de tiros e perseguições.           – Não é nada disso! A sinopse diz que é um drama. Um road movie contando a trajetória de amadurecimento de um garoto de 15 anos na companhia de um cavalo chamado Pete. Acho que você vai gostar.           Ludy resolveu dar uma chance, assistiu ao filme comigo e gostou! Suspeito que, assim como ela, muitos cinéfilos podem ter saltado essa opção no serviço de streaming, em razão do título inapropriado. Por outro lado, aqueles que deram o p

Não Olhe Para Cima: sátira política para os bons entendedores

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Não Olhe Para Cima: dirigido por Adam McKay SOBRAM FARPAS E CRÍTICAS PARA TODOS OS LADOS Pronto, o impacto midiático de Não Olhe Para Cima , filme de 2021 dirigido por Adam McKay, já passou. A onda de sucesso ressoou por vários dias – será que durou duas semanas? Seu estrondo se fez ouvir por todos os sites de entretenimento e feeds das redes sociais. Virou o assunto da hora. Todos tentaram tirar proveito do filme, garantindo audiência para seus comentários, críticas, análises, comparações... Quem tinha algo de inteligente a dizer, já o fez. Quem teve ideia para um meme, já postou. Quem precisava marcar território no campo ideológico, fincou sua bandeira. Agora, sobraram o vento e o silêncio. O sabor de novidade se diluiu no caldo morno da cultura popular e voltamos ao habitual estado de espera pela próxima sensação do momento.           Não Olhe Para Cima foi feito da mesma substância fugitiva que tentamos agarrar todos os dias nas telas dos nossos celulares, mas que insiste em escor

Sabor da Vida: tudo ao redor tem algo a nos dizer!

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Sabor da Vida: dirigido por Naomi Kawase QUANDO SONS E IMAGENS GANHAM EXPRESSÃO LÍRICA Estava ansioso para retomar as crônicas de cinema, depois de passar pela Covid. A variante que Ludy e eu contraímos foi aquela menos agressiva, que se alastrou na virada do ano, mas não podemos dizer que as duas últimas semanas foram aproveitadas como férias. Nada disso! Esse vírus é um pé-no-saco! Febre, dor no corpo, cansaço permanente, tosse... Para complicar, percebi diminuição na acuidade visual e senti dificuldade para fixar os olhos numa tela ou página de livro. Pode haver maior perda de tempo? Mesmo assim, consegui assistir a alguns filmes – não tantos quanto gostaria! Acumulei assunto para alimentar o blog e saciei minha fome de bom cinema. Aliás, o primeiro filme que degustei nesse período de convalescença foi um verdadeiro banquete: Sabor da Vida , realizado em 2015 pela diretora japonesa Naomi Kawase.           Eis aqui um filme delicado e ao mesmo tempo denso, realizado com sensibilidade

Feliz Ano Novo!

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PRETENDO OLHAR PARA O CÉU NOTURNO E ENXERGAR MAIS DO QUE FOGOS DE ARTIFÍCIO A luz elétrica revolucionou a vida em nosso planeta e alçou a humanidade a um patamar de conforto antes inimaginável, mas nos impôs um efeito colateral. Nossas cidades iluminadas ofuscaram o céu noturno e nos deixaram cegos para o esplendor da abóbada celeste. Aquilo que maravilhava nossos ancestrais cotidianamente, os intrigava e incitava a imaginação, apagou-se. Da minha varanda, numa noite sem nuvens e sem a luz do luar, tudo o que consigo enxergar olhando para cima são vários pontos luminosos, esparsos. Ainda assim suficientes para me pôr divagando sobre a imensidão do universo e as razões da existência.           Quando era garoto, aprendi na escola que a Terra está localizada na Via Láctea, uma galáxia como tantas outras. Lembro de uma foto num livro de geografia onde uma seta indicava o local exato. Fiquei intrigado: como é possível saber isso com tanta precisão, apenas olhando para o céu? O próprio nome

Um Crime de Mestre: um honesto suspense de tribunal

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Um Crime de Mestre: dirigido por Gregory Hoblit TIRANDO PROVEITO DO EMARANHADO JURÍDICO Lá pelos doze anos, o que me estimulou para a leitura foi Sherlock Holmes. As histórias do famoso detetive e seu assistente, Doutor Watson, mantinham-me ocupado por horas nas tardes de férias. Foi nas páginas de Sir Arthur Conan Doyle que encontrei a comprovação: o crime não compensa, mentira tem perna curta e não existe crime perfeito! O arrogante criminoso sempre deixará pistas na cena do crime, que estarão gritando na direção da verdade. Basta usar as ferramentas da dedução para montar o quebra-cabeça e fechar o circuito lógico.           Quando virava a última página do livro e encontrava a palavra “fim”, começava uma nova aventura: a de tentar imaginar como o autor havia construído tão intrincada história. A única possibilidade, conforme minhas próprias deduções lógicas, era seguir o caminho reverso: começar bolando a trama e depois criar os detalhes do crime, imaginando as pistas que seriam de

À Espera dos Bárbaros: baseado no romance de J.M. Coetzee

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À Espera dos Bárbaros: filme dirigido por Ciro Guerra DIRETO DA LITERATURA PARA AS TELAS Nas páginas de um livro, uma história segue no ritmo ditado pelo leitor. O autor pode combinar as palavras, buscando uma sugestão de cadência na sonoridade que elas evocam. Também pode forçar a pontuação para impor as pausas e marcar a tomada de fôlego. Mas é na leitura que a obra se abre para interpretações. Já no cinema, esse pacote vem pronto. O ritmo é dado pela duração das imagens e dos sons, mas também pelos gestos dos atores, seus olhares, linguagem corporal, tom de voz, pronúncia... Lembro disso para destacar que, no filme, a criação coletiva acaba com a ditadura do autor, que perde o controle absoluto da sua história. John Maxwell Coetzee o escritor sul-africano ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2003, resistiu o quanto pôde, tentando segurar as rédeas da sua obra. Em À Espera dos Bárbaros , ele mesmo assina o roteiro para a adaptação do romance que escreveu em 1980, dirigida em 201

Uma crônica de Natal

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UMA MENSAGEM DE ESPERANÇA Os círculos nas plantações, as luzes piscando no céu noturno, as abduções... Era tudo verdade! Os alienígenas do espaço chegaram numa embarcação tetradimensional. Com graciosos movimentos metafísicos ela pousou no heliporto de um prédio vizinho ao meu. Incrédulo, fui recepcioná-los.           Com a ajuda de um desses googletranslators conseguimos iniciar uma conversa. Objetivos e racionais – como era de se esperar de alienígenas autênticos – foram direto ao ponto: perguntaram o significado do evento que mobilizava o planeta inteiro naquele dia 25 de dezembro.           – Ih, rapaz! Perguntaram para o sujeito errado. Não sou muito ligado a assuntos religiosos... Acho que um padre explicaria melhor.           Como os visitantes permaneceram impassíveis, com os imensos olhos atentos, não tive alternativa senão apresentar uma resposta. Ela foi saindo de improviso, entre frases gaguejadas:           – Vejam... Como eu disse, é um evento religioso, em comemoração ao

Imperdoável: Sandra Bullock merecia um roteiro melhor

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Imperdoável: filme dirigido por Nora Fingscheidt QUEM NÃO MERECE PERDÃO SÃO OS ROTEIRISTAS! Já vou logo avisando: esta crônica será diferente daquelas que você costuma ler aqui na Crônica de Cinema. O motivo é que detestei esse filme! Ele é irritantemente fraco e mal construído. Para explicar meu ponto de vista, precisarei apelar para spoilers – o que evito ao máximo, mas aqui serão necessários. Assim, fica o alerta: caso não tenha assistido ao filme  Imperdoável , dirigido em 2021 por Nora Fingscheidt, talvez prefira fazê-lo antes de ler esse texto. Depois de ver com os próprios olhos, poderá voltar e conferir se as nossas opiniões convergem ou divergem.           Antes de mais nada, quero lembrar que o filme  Imperdoável é a adaptação para o cinema da minissérie em três episódios intitulada Unforgiven , escrita por Sally Wainwright e exibida na TV britânica em 2009. Vejo aqui o primeiro ponto fraco! O fluxo narrativo numa minissérie é diferente daquele apropriado para um filme. Lá h

Loucos por Justiça: Mads Mikkelsen não está para brincadeiras

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Loucos Por Justiça: filme de Anders Thomas Jensen SALTANDO DE GÊNERO EM GÊNERO, SEM PERDER A VEROSSIMILHANÇA Close no militar embrutecido pelo estresse pós-traumático, tão calejado de guerra que só consegue enxergar o mundo pela perspectiva da violência. Transformado em máquina de guerra poderosa e incontrolável, sua razão de ser é causar dor nos inimigos incautos que cruzam seu caminho. Suas feições gélidas intimidam. Seu olhar não deixa entrever qualquer emoção. Suas expressões jamais se alteram. É... Não restam dúvidas, estamos diante de um personagem padrão nos filmes de ação hollywoodianos. Mas espere! Esse é um filme dinamarquês! E repare bem: a mente do tal militar não é um recipiente vazio de emoções! Elas fervilham em aflição e angústia. Escapam pelas microexpressões do ator! E que ator é esse? O Mads Mikkelsen, com a cabeça raspada e uma barba imensa! Ah, esse Loucos Por Justiça , filme de 2020 dirigido por Anders Thomas Jensen é mesmo de prender a atenção!           Uma únic

Ataque dos Cães: entenda o significado do ponto de virada desse western sombrio

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Ataque dos Cães: filme dirigido por Jane Campion UM ESPETÁCULO AUDIOVISUAL REFINADO E FLUENTE Então, com a próxima temporada do Óscar atiçando a sede por indicações, eis que os serviços de streaming se animam a encher nossas telas com cinema de verdade. Ataque dos Cães , filme de 2021 escrito e dirigido pela cineasta neozelandesa Jane Campion é um filme e tanto. Um espetáculo audiovisual que nos traz um melodrama sólido, com narrativa fluente, atuações marcantes, uma temática envolvente e vocação para ensejar diferentes interpretações. Para formar uma opinião crítica a respeito dessa produção é preciso ponderar diferentes elementos. Primeiro, vamos começar falando da diretora.           Jane Campion tornou-se célebre depois que dirigiu o filme O Piano em 1993, o que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes – a primeira mulher a receber o prêmio – e o Óscar de melhor roteiro original. Credenciada como grife de cinema criativo e maduro, sua assinatura nos créditos é motivo suficiente para d

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