Direto ao Conto - 2


CATARSE

Duvido que adivinhem a trajetória da bala. Uma coisa é periciar um projetil cravado numa parede... Tem o ângulo de entrada, a penetração... Mas se essa bala atravessou um capacete, complica. Como saberão para onde o filho da puta estava olhando quando teve o cérebro esfarelado? O legista, no máximo, afirmará que o tiro foi disparado de cima para baixo. Que saiu, provavelmente, de uma dessas janelas, entre o primeiro e o décimo andar de qualquer um desses prédios, amontoados ao longo desses quarteirões, espremidos nesse bairro de classe média, habitado por uma gente entediada de tanto conforto.
        Isso aqui não é cinema, é vida real!
        Ok, vão investigar. Examinarão os registros e descobrirão quais desses moradores possuem armas em casa. E daí? Aposto que só vão encontrar 38, talvez uma ou duas nove milímetros. Fuzil, duvido!
        Meu fuzil? Ele nem existe!
        Um tiro de fuzil na madrugada não será sutil. Acordará todo mundo. Os cidadãos pacatos, deitados em seus leitos de mediocridade, ouvirão o estrondo e levarão algum tempo até compreender que se trata, sim, de um tiro. Até se levantarem, calçarem seus chinelos, vestirem seus roupões e chegarem até a janela... Vão se deparar com o filho da puta estatelado no asfalto... Com a motocicleta tombada a poucos metros dali... Ficarão chocados! Quando se lembrarem de olhar em volta, tentando adivinhar de onde saiu o tiro, já terão se passado 30 ou 40 segundos. Tempo mais que suficiente. Guardo a arma no armário da área de serviço, junto com as vassouras, acendo a luz e saio na sacada, fazendo pose de chocado.
        Ninguém reconhecerá o filho da puta estatelado no chão. Alguns, confusos com os ecos do estampido ainda ressonando no cérebro sonolento, temerão por seus parentes e amigos. Farão insistentes ligações e enviarão mensagens de texto, até se certificarem de que nenhum conhecido foi covardemente abatido. Outros usarão o celular para gravar em vídeo o evento macabro que lhes atrapalhou a noite de sono – imagens que na manhã seguinte serão exibidas aos colegas do escritório, como justificativa para o pequeno atraso numa quarta-feira. Haverá também os mais articulados, que sairão à rua, mantendo uma certa distância do cadáver, ao menos até chegar a primeira viatura. Depois, quando várias sirenes estiverem relampejando e o perímetro definitivamente isolado por cones e fitas adesivas, tentarão se aproximar, para saciar a própria curiosidade e também a dos chatos, que ligam e religam em busca de novidades.
        A sacada do meu apartamento terá vista privilegiada, feito um camarote. Acenderei a luz e me debruçarei no guarda-corpo. Olharei para todos os lados, antes de finalmente reparar na presença do meu vizinho, o rapaz franzino, que quase não reconhecerei vestido de pijamas – só o encontro no elevador, sempre metido num terno da moda e carregando uma bolsa de couro à tiracolo. Ele esticará o pescoço e perguntará, com voz pastosa, se tenho conhecimento do que está se passando. Responderei com outra pergunta, para fazê-lo olhar com mais atenção para a cena do crime:
        – Isso foi um tiro?
        Depois que meu vizinho pronunciar um inseguro “acho que foi”, perguntarei se ele imagina de onde teria sido disparado, apenas para fazê-lo olhar para todos os demais apartamentos que se iluminam em sequência, revelando os demais curiosos que se debruçam em suas janelas, enquanto fazem as mesmas perguntas. Sem respostas, meu vizinho e eu, agora na companhia da mulher dele – que parecerá assustada quando surgir descabelada – continuaremos gastando nossos vários e preciosos minutos de sono para registrar a movimentação dos policiais, dos paramédicos, dos legistas, dos curiosos...
        Finalmente, exaustos dado o adiantado das horas, iremos todos dormir, porque afinal, amanhã teremos um dia cheio, sobrecarregado de normalidades. Na primeira hora, durante o café da manhã, vasculharemos os sites de notícias em busca dos detalhes sobre a ocorrência. Quem era a pobre vítima, alvejada na cabeça enquanto pilotava ruidosamente a sua motocicleta pelo bairro? A polícia já tem alguma pista sobre o autor do disparo? Qual teria sido a motivação para tão brutal ato criminoso?
        A resposta para a primeira pergunta é a que mais me interessa. Sim, terei curiosidade em conhecer a identidade do filho da puta. Imagino que seja alguém com bom poder aquisitivo, ao menos abastado o suficiente para poder adquirir uma motocicleta tão potente. Se tiver uns vinte e poucos anos, será um filhinho de papai. Se tiver mais de trinta, um imaturo destrambelhado. Se bem que posso estar falando merda! Uma porcaria de uma motocicleta dessas, seminova, deve custar o mesmo que um carro mediano. Qualquer infeliz pode se dar ao luxo de conseguir financiamento. Qualquer pé-rapado!
        Os tais jornalistas investigativos só se darão ao trabalho de investigar a fundo se o filho da puta for parente de algum político, ou de algum endinheirado, ou de alguma celebridade. Especularão, costurando narrativas para preencher as lacunas entre os poucos fatos que conseguirem levantar. Manterão o mistério por dias, enquanto o desinteresse da audiência não for maior que sua curiosidade mórbida. Aproveitarão para condenar as armas de fogo, militando em favor da sua ampla proibição – se bem que, em se tratando de um tiro de fuzil, talvez seja melhor não tocar nesses assuntos. Isso pode ser coisa de traficante, e aí... A questão fica mais complexa! Os interesses ficam mais conflitantes.
        Se for um zé-ninguém, sua morte será registrada apenas no noticiário local, preenchendo poucas linhas. Talvez mereça uma foto. Se tiver ligações com bandidos, terá direito à divulgação da ficha corrida. Sua morte será classificada como queima de arquivo. Não haverá tempo para que o público o veja como um personagem. Seus quinze minutos de fama póstuma passarão num estalo. Tirando alguns dos meus vizinhos, ninguém nutrirá interesse pelo caso. No máximo, os porteiros e zeladores dos arredores terão assunto por uma ou duas semanas.
        Mas não tenho ilusões. Provavelmente, acabarei confirmando o que já venho intuindo: o filho da puta não passa de um mecânico, aficionado por motociclismo – um piloto frustrado, desprovido de qualquer chance de ingressar no meio esportivo, mas arrogante o suficiente para se considerar um verdadeiro piloto. Um autodidata precário que não completou o ensino médio. Na melhor das hipóteses, um diplomado com notas sofríveis em algum desses cursinhos noturnos de mecânica de motos. Um semianalfabeto com vocabulário precário, mas dono de um celular caro, pago em prestações e servido pela operadora que oferece o plano mais barato do mercado. Um solteiro sem família, crescido sem exemplo paterno, cercado de péssimas amizades, entregue à promiscuidade, morador de algum bairro distante, que não se interessa por música, não joga futebol no sábado pela manhã, não vai ao cinema, não treina em academia, não frequenta bares, não vai à igreja... Não faz outra coisa senão manter a moto funcionando. Potente, ligeira, reluzente e barulhenta. Não tem medo de nada nem de ninguém, não dá ponto sem nó, não tem papas na língua, não leva desaforo pra casa. Quer mais é que todos se fodam. Que chorem de ódio e praguejem. Que se revirem em suas camas abarrotadas com notas de dinheiro por debaixo do colchão, sempre que o ouvirem assassinando o silêncio da madrugada, passando com sua moto potente, ligeira, reluzente e barulhenta. Que tremam de raiva quando escutarem o ronco do motor, que ele mesmo afina cotidianamente com precisão meticulosa. Que engulam seus decibéis de pura revolta e se engasguem de susto. Que o ouçam chegando, invadindo os quartos: o do casal, o da avó insone por causa da artrite reumatoide e o do bebê chorão de tanta cólica. Que a plateia o acompanhe por todo o percurso, enquanto ignora os semáforos, as passagens de nível e os cruzamentos perigosos. Que saibam todos da sua existência, da sua insistência, da sua inevitabilidade...
        E se o filho da puta tiver uma mãe?
        Sinto muito!
        É papel da mãe chorar a morte do filho. Esvaziar-se. Secar em lamentações. Mas também é papel dela evitar que o filho se torne um verme. Puxar-lhe a orelha aos cinco anos, dar-lhe umas palmadas aos dez, um cascudão aos quinze... Buzinar-lhe o certo sempre que o desgraçado insistir no erro. Castigá-lo com o rigor maternal – que é infinitamente mais doloroso. E, por fim, negar-lhe proteção quando perceber que o infame se tornou um grandessíssimo filho da puta.
        Será inevitável. Olharei para sua foto no site de notícias e enxergarei um ser humano. Mas estarei preparado. Vou procurar saber o mínimo sobre ele e sua vida inútil. Apenas o suficiente para me precaver, para manter-me insuspeito. Cada detalhe desnecessário que conhecer virá para me remorder a consciência – e a última coisa que quero é ouvir a culpa rugindo furiosa, interrompendo minhas noites de sono, feito uma motocicleta potente, ligeira, reluzente e barulhenta.
        Percorrendo as madrugadas, atormentando a coletividade, o filho da puta jamais tomou conhecimento da minha existência como indivíduo. Jamais se incomodou com a minha humanidade, com os meus direitos de cidadão, com minhas prerrogativas de ofendido devastado por danos morais. Pois jamais ficará sabendo o que o atingiu! Meu tiro será certeiro e definitivo. Será dado de cima para baixo. Piedoso!
        Isso mesmo! Meu tiro de misericórdia porá fim ao tormento do filho da puta – decerto portador de alguma insanidade mental, que o inabilita ao convívio em sociedade. Pois encurtarei sua pena! Vou livrá-lo da condenação de vagar feito fantasma pelas madrugadas, clamando por migalhas de atenção. E irei além: matarei dois coelhos! Acabarei ao mesmo tempo com o sofrimento de uma vizinhança inteira, que já não suporta mais o assédio petulante de um tal exterminador de sossego.
        Apertar o gatilho será, portanto, um gesto de sacrifício. Nobre. Altruísta. Heroico. Acabarei com o tormento de todos, mas seguirei atormentado pelo resto da vida. O estampido que ecoará de prédio em prédio, para alívio da coletividade, ficará martelando indefinidamente em minhas lembranças. Prisioneiro de tamanho segredo, cumprirei a pena de carregar nas costas todo o peso da minha máxima culpa. Ardendo com o medo perpétuo de ser descoberto, serei a verdadeira vítima!
        Valerá a pena apertar o gatilho? Sim, já me convenci. Purgado pela comoção de ter vivenciado tamanha tragédia – pesado os prós e os contras – estou agora aliviado e mais lúcido. Acalmado pela catarse proporcionada por tão esmiuçada encenação, já posso esperar em paz pelo meu próximo encontro com o filho da puta. Será amanhã, de madrugada. Estarei esperando. Com o dedo no gatilho. Pronto para disparar e guardar a arma no armário da área de serviço, junto com as vassouras. Depois, acenderei a luz e aparecerei na sacada, fazendo pose de chocado.
        Ninguém imagina que eu possa ter um fuzil!
        Meu fuzil? Ele nem existe!

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