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Mostrando postagens com o rótulo Conto

Direto ao Conto - 7

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NOVAS EVIDÊNCIAS Minha aspiração era ser escritor, mas não! Sou policial. Ao invés de palavras, reúno provas, salpicadas sem nexo pelas cenas dos crimes. Pinço substantivos e os empacoto, etiqueto e catalogo. Colho depoimentos, mas não cultivo narrativas. Ao contrário, as desmonto. Depois remonto. Deixo de fora qualquer vestígio autoral. Ouço vozes ativas e passivas, estapafúrdias, ameaçadoras, apavoradas, rancorosas, meliantes... Exerço uma datilografia disléxica, despreocupada com eventuais revisores xeretas. É assim que registro crimes gramaticais e atentados ortográficos. Laudos periciais, boletins de ocorrência, relatórios de inquérito, alegações... São os formatos literários que me cabem.           Participei, certa vez, de uma reconstituição muito comentada. Foi meu ápice narrativo. Senti-me um diretor de cinema, ao apontar minhas lentes subjetivas na direção da materialidade. Derramei as luzes no encalço da ação. Gritei cortes, para desencadear ...

Direto ao Conto - 6

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RESTOLHOS O apocalipse, quando veio, não foi na forma de hecatombe nuclear. Foi um mero apagão! Algum tipo de anomalia solar mexeu com as forças magnéticas do planeta e fritou nossas redes de geração e distribuição de energia. A eletricidade simplesmente deixou de existir. Ao menos aquela que jorrava com fartura das tomadas embutidas nas paredes de casa, que usávamos para carregar nossos celulares. Junto com a eletricidade, desapareceram os bytes, os megabytes e o dinheiro! Depois, num acelerado efeito dominó, desapareceram a comida, os combustíveis fósseis, os meios de transporte, a informação, a salubridade, a lei, a ordem... Um mês de escuridão foi suficiente para gerar o caos e aniquilar 20% dos humanos. Em três meses, restávamos 50%. Em seis meses, não chegávamos a 15% de farrapos humanos.           Na manhã do apagão global estava com 32 anos e morava sozinho, num apartamento alugado no centro da cidade. Trabalhava para uma agência de propaganda como ...

Direto ao Conto - 5

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ESPAÇO-TEMPO O movimento era normal para uma quinta-feira. Pelo adiantado da hora – passado das três – só o que se ouvia eram as canções despudoramente românticas, bem ao gosto dos três casais que insistiam em balançar agarradinhos na minúscula pista de dança. Pelas mesas, os pares eram formados por clientes habituais e garotas de programa, dissolvidos na penumbra enevoada, banhada por uma frouxa luz avermelhada. Renato e Joanes dividiam a mesa mais discreta, num dos cantos com visão privilegiada para todo o interior do estabelecimento. Por certo não eram um casal. Estavam mais para uma dupla, não de cantores sertanejos, mas de comparsas.           – Você acredita em vida depois da morte? – disparou Joanes, mantendo o olhar fixo em algum ponto que apenas ele era capaz de enxergar.           – Sim, acredito. – Antes de continuar, Renato balançou as pedras de gelo no seu copo de uísque e sorveu o último gole. – A alma independe d...

Direto ao Conto - 4

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AdvocacIA São Paulo, 7 de novembro de 2048 – 19h12 . João entrou ofegante na sala de embarque e encontrou todas as poltronas ocupadas. Muitos aguardavam de pé. Por sorte, um idoso sentado a poucos metros dele se levantou, pegou a bagagem de mão e saiu apressado. Que sincronia providencial! João não precisou demonstrar afobação nem ser deselegante. Apenas se sentou. Ajeitou a gravata, tirou o celular do bolso e retomou a leitura do seu livro. Tentava parecer despreocupado e entediado, como cabe a todo passageiro calejado de viagens aéreas. Mas logo perdeu a pose: uma mensagem da Estatal de Correios veio para o primeiro plano, como um alerta inoportuno:           “João Hermes de Araújo. Cruzamos seus dados de origem e destino e identificamos uma oportunidade de otimização logística. Trata-se de um pacote remetido para o seu endereço, a ser entregue para seu vizinho do apartamento 1612. A remessa chegará às suas mãos por meio de um de nossos drones. O pacote j...

Direto ao Conto - 3

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FRAGMENTOS Anselmo acordou cedo. Como de costume, sentou-se na beirada da cama e arrastou os pés, à procura dos chinelos pelo chão. Primeiro o direito, depois o esquerdo. Seguiu para o banheiro e mijou demoradamente. Depois parou diante do espelho e começou a inspeção: as entradas da calvície, a simetria do bigode, os pelos brancos da barba... Sim, conseguia reconhecer a si mesmo. Sim, tinha plena consciência dos seus 79 anos. Sim, lembrava-se de que era quinta-feira, dia de diarista.           Nenhum sinal do temido Alzheimer!           Satisfeito, Anselmo se pôs a escovar os dentes. Quando terminou, concluiu que precisava acordar Isabel com um beijo. Ela iria adorar uma tal demonstração de carinho. A volta para o quarto, no entanto, foi um desajeitado tropeço na realidade. A cama estava vazia. Isabel já estava morta há quase dois anos!           Sentado na beirada da cama, Anselmo passou um bom ...

Direto ao Conto - 2

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CATARSE Duvido que adivinhem a trajetória da bala. Uma coisa é periciar um projetil cravado numa parede... Tem o ângulo de entrada, a penetração... Mas se essa bala atravessou um capacete, complica. Como saberão para onde o filho da puta estava olhando quando teve o cérebro esfarelado? O legista, no máximo, afirmará que o tiro foi disparado de cima para baixo. Que saiu, provavelmente, de uma dessas janelas, entre o primeiro e o décimo andar de qualquer um desses prédios, amontoados ao longo desses quarteirões, espremidos nesse bairro de classe média, habitado por uma gente entediada de tanto conforto.           Isso aqui não é cinema, é vida real!           Ok, vão investigar. Examinarão os registros e descobrirão quais desses moradores possuem armas em casa. E daí? Aposto que só vão encontrar 38, talvez uma ou duas nove milímetros. Fuzil, duvido!           Meu fuzil? Ele nem existe!    ...

Direto ao Conto - 1

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SEMPRE VIGILANTE Noronha se lembrou de quando acordou da cirurgia, à qual se submetera dois anos antes, para extração da vesícula biliar – naquele instante, teve a sensação de ter sido atropelado por uma carreta desgovernada. A dor não latejava em pontos específicos. Era um alarme gritando por toda a parte. O corpo, desobediente a comandos, ameaçava levar anos para se recuperar.           – Nunca levei um tiro, mas... já entrei na faca. Sei bem o que você tá sentindo – disse, tentando mostrar empatia com o pobre vigilante, esparramado naquele leito de enfermaria lotada.           – Dói, Seu Noronha. Dói bastante... Ainda bem que eles me costuraram. Disseram que eu vou ficar de molho por três ou quatro semanas. Pelo menos a comida daqui é boa... E tem umas enfermeiras gostosas pra cara...           O vigilante tirou o sorriso do rosto quando percebeu que o filho de Noronha o encarava com os olhos a...

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