O Estado das Coisas: um filme dentro de outro filme!

Cena do filme O Estado das Coisas
O Estado das Coisas: filme de Wim Wenders

PESSOAL, INTIMISTA E REPLETO DE REFERÊNCIAS AO PRÓPRIO CINEMA

Dia desses, voltei no tempo. Fui parar em 1982, quando tinha 21 anos e frequentava os bancos da faculdade de comunicação – minha opção era pelo curso de publicidade e propaganda. Minha paixão secreta, no entanto, era o cinema. Então, por que raios não estava estudando cinema? Bem, poderia apresentar aqui um arrazoado completo de desculpas, uma mais convincente do que a outra, que você depois poderia jogar no lixo, sem cerimônia. O fato é que, enquanto me ocupava em ser publicitário, havia muita gente com mais coragem fazendo filmes. Gente por todos os cantos do planeta.
        Hoje, com a internet, o planeta é um tiquinho. Naquela época, era colossal! O acesso aos filmes dependia de insistência e sorte. Era muito mais fácil ler sobre cinema e os cineastas do que assistir às suas obras. Vez ou outra, nos cineclubes ou nas casas de amigos mais aristocráticos, tropeçava em preciosidades que não entravam no circuito comercial. Na maior parte do tempo, tinha que me contentar com o que era destinado ao grande público. Pior! Tinha que me contentar com a telinha embaçada da TV, que compartilhava com toda a família e ainda não era conectada a um videocassete.
        A máquina do tempo que me transportou para o passado, e que estava ajustada para 1982, atende pelo nome de O Estado das Coisas. Trata-se do filme dirigido naquele ano pelo alemão Wim Wenders, vencedor do Festival de Cannes e que se tornou um dos mais importantes na sua carreira. Que máquina do tempo eficiente! A exuberante fotografia em preto-e-branco, o ritmo desapressado da narrativa, a supremacia do visual sobre as tagarelices, os timbres eletrônicos da trilha sonora... Materializaram-se diante dos meus olhos todas as dúvidas e incertezas que me afligiam sobre, afinal, o que é o cinema. Desorientado, percebi que naquela época não fazia ideia do que se tratava. Quando terminei de assistir ao filme, concluí que, talvez, nem mesmo o diretor soubesse! Compreendi que preciso continuar buscando respostas.
        Tropeçar em O Estado das Coisas foi uma benção. A cópia remasterizada que encontrei no serviço de streaming enalteceu as imagens primorosas captadas pelo francês Henri Alekan, lendário diretor de fotografia de tantos filmes importantes. A prosódia original do premiado Wim Wenders, um dos grandes nomes do cinema alemão, lembrou-me que a sétima arte é uma vastidão de possibilidades. Que ao contar uma história, o cineasta oferece seu olhar para o espectador e tenta mostrar o que só pode ser revelado com emoções. Que atmosfera é um composto orgânico de imagens sonoras e ritmos visuais. Que as palavras que os personagens pronunciam da boca para fora guardam significados que só saberemos no final.
        Antes de seguir, porém, é melhor colocar os pés no chão. Vamos examinar a sinopse de O Estado das Coisas. O filme conta a história de um cineasta, Friedrich Munro (Patrick Bauchau), que está realizando um longa-metragem de ficção científica intitulado The Survivors. As filmagens acontecem em Portugal, num hotel à beira mar, que serve de locação para uma história pós-apocalítica sobre os tais sobreviventes que perambulam por uma Terra contaminada. Acontece que a produção tem que ser interrompida, porque acabou o dinheiro e o estoque de filmes. Gordon (Allen Garfield), o produtor, sai atrás dos financiadores e não dá notícias, enquanto os membros da equipe permanecem num entediante estado de espera naquela localidade remota. A situação fica insustentável, até que o próprio Friedrich Munro vai para Los Angeles atrás de Gordon, onde descobre as reais complicações em que está metido.
        O Estado das Coisas nasceu justamente quando Wim Wenders precisou fazer uma pausa nas filmagens de Hammett, que estava realizando sob a produção de Francis Ford Coppola. Enquanto esperava, aproveitou para projetar toda a sua frustração e desilusão com a indústria cinematográfica de Hollywood. Fez um filme pessoal, aproveitando para incluir uma quantidade enorme de referências a personalidades ligadas ao cinema, enquanto escavava as emoções e reações da equipe e do elenco. E aproveitou também para investigar o jeito europeu de fazer cinema, mais intelectualizado e às vezes menos atento às premissas comerciais.
        Wim Wenders exercita aqui o seu estilo poético de fazer cinema. Porém, ao contrário de filmes como Asas do Desejo, em que não se apegou a um roteiro previamente estruturado, aqui ele seguiu o script que escreveu com Robert Kramer e Joshua Wallace. Adotando uma estética experimental, combinou imagens expressivas com sons eletrônicos futuristas, editados numa trilha sonora assinada por Jürgen Knieper. O resultado talvez não agrade os espectadores mais jovens, criados a base de filmes de ação desenfreada, mas vai ao encontro do que esperam os cinéfilos apreciadores dos filmes de arte.
        A verdade é que, com o passar dos anos, deixei de me impressionar em demasia com as belas imagens que os cineastas são capazes de materializar. Dou mais importância à história que está sendo contada e julgo o visual – e o áudio! – de acordo com a pertinência narrativa. Wim Wenders sempre soube ser instigante, insinuando significados e tentando atrair o espectador para o mundo interior dos personagens que retrata, mas seu estilo arrastado perdeu a competitividade em comparação com a de outros cineastas, que obtém resultados estéticos e dramáticos mais envolventes.
        É claro que não desejo reduzir o cinema a uma mera competição, mas ao revisitar O Estado das Coisas voltei para uma época quando os filmes instigantes chegavam dentro de uma vistosa embalagem de intelectualidade. Ao mesmo tempo em que nos estimulavam a pensar, não traziam pistas que poderiam dizer se estávamos pensando na direção certa. Nos deixavam por nossa própria conta. Sozinho, com esse filme de Wim Wenders, concluí que a sétima arte se tornou um universo vasto de infinitas possibilidades, que quando tratado com sensibilidade artística e um tanto de predisposição à metalinguagem, pode render ótimas histórias.

Resenha crítica do filme O Estado das Coisas

Título original: Der Stand der Dinge
Ano de produção: 1982
Direção: Wim Wenders
Roteiro: Robert Kramer, Wim Wenders e Joshua Wallace
Elenco: Patrick Bauchau, Allen Garfield, Isabelle Weingarten, Rebecca Pauly, Jeffrey Kime, Geoffrey Carey, Camilla Mora, Alexandra Auder, Paul Getty Jr., Samuel Fuller, Roger Corman, Janet Rasak, Artur Semedo, Francisco Baião, Robert Kramer e Monty Bane

Comentários

Confira também:

Menina de Ouro: a história de Maggie Fitzgerald é real?

Tempestade Infinita: drama real de resiliência e superação

Siga a Crônica de Cinema