Conclave: suspense papal voltado para os não católicos

Cena do filme Conclave
Conclave: direção de Edward Berger

NARRATIVA MANIPULADORA, PERSONAGENS CARICATOS

Esta crônica contém spoilers. Um tal alerta logo de início não é comum aqui na Crônica de Cinema; por regra, evito revelar detalhes cruciais, para não estragar a surpresa dos cinéfilos. No entanto, Conclave, filme de 2024 dirigido por Edward Berger, pisa num terreno tão escorregadio que decidi fazer uma exceção. Caso você ainda não tenha assistido a esse filme, sugiro que o faça antes de continuar a leitura; mas peço que tenha em mente alguns pontos importantes: o filme descarta o conteúdo religioso, para se concentrar nos meandros da disputa eleitoral de um novo papado; esboça os embates políticos de forma caricata e desenha personagens estereotipados; escancara um viés progressista, com uma narrativa manipuladora em favor de mudanças na Igreja; desconsidera a fé como princípio vital que há dois mil anos rege o catolicismo – ao contrário, enaltece a dúvida!
        Se você já assistiu a Conclave, talvez tenha sentido certo incômodo diante do apurado tratamento audiovisual dado ao filme. As belíssimas imagens arquitetadas pelo diretor de fotografia, o francês Stéphane Fontaine, enchem nossos olhos, mas irradiam uma impessoalidade gélida e evocam distanciamento; quem já visitou o Vaticano, ainda que na qualidade de turista, experimentou sensações opostas: aproximação com o divino e uma introspecção convidativa. Na escolha dos planos, nos enquadramentos simétricos e no ritmo cadenciado da edição, o diretor Edward Berger ressalta racionalidade e materialidade – nada de espiritualidade. A música assinada por Volker Bertelmann só faz ressaltar melancolia e redundância mundana – evita a contemplação ao sagrado.
        Conclave se apresenta como um thriller de mistério, tenso e pontuado de suspense, que pretende desvendar os bastidores do processo de eleição papal; é uma obra de ficção, executada com excelência técnica, mas contaminada com preconceitos contra a Igreja Católica. O filme é uma adaptação do livro com o mesmo nome, escrito em 2016 pelo romancista inglês Robert Harris, autor de vários best-sellers – entre eles O Oficial e o Espião, que virou filme nas mãos de Roman Polanski. Como um não católico, sem especialização em assuntos do Vaticano, Harris sentiu-se confortável em manter o foco no monumental edifício construído com pompa, poder e riquezas, para retratar apenas os seus aspectos ritualísticos e se esbaldar no calor das disputas políticas.
        Para adaptar o livro de Robert Harris, os produtores escolheram o roteirista britânico Peter Straughan, que escreveu os roteiros de O Espião Que Sabia Demais e da série de TV Wolf Hall. Experiente, ele fez uma adaptação bastante fiel, já que o romance original apresenta uma estrutura cinematográfica; em dois meses chegou ao primeiro rascunho, que foi burilado ao longo de outros três, até que o diretor Edward Berger – ele realizou o excelente Nada de Novo no Front – ingressou no projeto. Durante as filmagens, Straughan teve a oportunidade de fazer ajustes finos no texto, na medida em que o trabalho dos atores era agregado ao trabalho de criação coletiva que caracteriza qualquer filme.
        Conclave tenta revisitar a atmosfera de suspense dos thrillers políticos, mas sucumbe à teatralidade; de um lado, articula cenas mais apropriadas para os palcos, de outro, dedica-se a mostrar os aspectos teatrais da eleição papal: os rituais, a pompa, a expectativa da plateia, o desfile dos atores... Cercados de ícones religiosos – e obras eternizadas na história da arte – os cardeais se movem com precisão, como que a deslizar sobre um tabuleiro de xadrez; o ritmo é lento, matemático e racional. Os personagens portam objetos mais identificados com o mundo dos negócios – pastas com documentos, maletas e computadores –, enquanto manipulam persianas elétricas e se fecham em seu casulo de poder e conforto.
        A verdadeira manipulação, no entanto, começa com a morte do Papa, fato tratado de forma burocrática, como uma ocorrência banal. Morreu, e pronto! O que interessa ao filme é ir direto ao ponto: os Cardeais trancafiados a chave no Vaticano, num embate político para decidir entre alguns candidatos naturais: Aldo Bellini (Stanley Tucci), um progressista; Joshua Adeyemi (Lucian Msamati) um conservador; Joseph Tremblay (John Lithgow), um moderado e Goffredo Tedesco (Sergio Castellitto), um tradicionalista. O progressista não decola, o moderado se revela um articulador inescrupuloso e o conservador, que sucumbiu ao pecado, chafurda em hipocrisia.
        Há, porém, uma unanimidade: a noção de que o tradicionalista é, sim, o grande vilão de Conclave. O filme induz o espectador a torcer pela derrota do Cardeal Tedesco e se apegar ao suposto bom-senso do Cardeal Lawrence (Ralph Fiennes), o homem à frente do Colégio de Cardeais. O problema é que o Decano está com sua fé abalada; em certo momento ele se atreve a confessar: quer um Papa que duvide! As certezas de Tedesco – que horror! – não podem se impor; é preciso achar um jeito de impedir que ele se torne o novo Papa! O que fazem os realizadores do filme? Lançam mão de uma velha artimanha narrativa, conhecida no teatro como Deus ex Machina: uma intervenção maquinada por Deus para impor sua vontade e assim resolver o problema.
        Tal intervenção vem na forma de um atentado terrorista perpetrado por radicais islâmicos, que explode a cúpula da Capela Cistina. As ideias tradicionalistas de Tedesco ficam ainda mais perigosas – certamente ressuscitarão o horror das cruzadas! A solução aparece no obscuro Cardeal Vincent Benitez (Carlos Diehz), um arcebispo mexicano que trabalha incógnito no Afeganistão. Ele se ergue com um discurso progressista, em defesa de todas modernidades que inundaram a Igreja depois do Concílio Vaticano II. Pronto! É eleito o novo Papa!
        Mas isso não é tudo, caro leitor! Acontece que o Cardeal Benitez esconde um segredo perigosamente embaraçoso para a instituição do catolicismo: ele não é do sexo masculino; na verdade, é uma mulher que cresceu e viveu disfarçada! Ah, os realizadores se puseram exultantes! Seu filme conseguiu, finalmente, expor toda a hipocrisia da Igreja Católica e dar um definitivo xeque-mate nessa partida decisiva. Bobagem! Acharam que ao recuperar a lenda da Papisa Joana – que teria governado como Papa na Idade Média depois de se passar por homem –, adicionariam um ponto de virada arrebatador. Talvez, para os não católicos, interessados em ver a instituição fracassar depois de dois mil anos, o truque funcione.
        Para os católicos, porém, Conclave não passa de mais uma investida, como tantas outras. É um filme bem realizado, com um elenco competente e uma narrativa envolvente, mas com conteúdo insosso. Como todos poderemos agora acompanhar, a eleição de um novo Papa tem significados espirituais profundos, que não podem ser resumidos numa mera disputa eleitoral.

Resenha crítica do filme Conclave

Ano de produção: 2024
Direção: Edward Berger
Roteiro: Peter Straughan
Elenco: Ralph Fiennes, Stanley Tucci, John Lithgow, Lucian Msamati, Brían F. O'Byrne, Carlos Diehz, Merab Ninidze, Thomas Loibl, Sergio Castellitto, /Isabella Rossellini, Jacek Koman, Loris Loddi, Roberto Citran e Balkissa Maiga

Comentários

  1. Adoraria assistir este filme tenho interesse , com outro olhar mais realista etc sem fantasia.onde vc viu o filme? Vc é maravilhoso grata por

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ah, muito obrigado. Esse filme está disponível na Prime.

      Excluir
  2. Gostei da análise, infelizmente muitas obras com grande potencial, se perdem no lado político, talvez se tivessem mesclado uma espécie de batalha espiritual entre os cardeais que não tem tanta fé, com os que tem ainda um resquício da fé, poderia ter sido mais real.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Concordo

      Excluir
    2. Obrigado. O lado político é vital e merece ser destacado em um filme como esse, no entanto, descartar a espiritualidade e a fé é amputar a essência do conclave. Um cineasta católico, baseado em um livro católico, interessado em desvendar os corredores do poder no Vaticano, teria tal compreensão, mas seu filme seria mais caloroso e não tentaria enaltecer a dúvida, mas agarrar-se às certezas.

      Excluir
    3. Conclave é um filme manipulador, que nos mostra apenas o que enxerga pelo buraco da fechadura, mas garante que é tudo o que tem para ser visto. Toma o catolicismo apenas pela política e escolhe o viés progressista. É um corintiano, discutindo em profundidade os rumos da Sociedade Esportiva Palmeiras. É um pagodeiro, lapidando a estrutura harmônica do jazz. É um professor de álgebra corrigindo uma prova de química orgânica. Não se trata de ter pudores religiosos, mas de ser católico; um que tem consciência dos dogmas e abraça a fé. E também, como você disse, de prestar a devida atenção às sutilezas da manipulação.

      Excluir
  3. Já havia me programado para vê-lo hoje, domingo, e o farei. Depois voltarei a ler sua resenha.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Legal, Corina! Depois não deixe de comentar, para ver se a sua opinião bate com a minha.

      Excluir

Postar um comentário

Confira também:

Tempestade Infinita: drama real de resiliência e superação

Menina de Ouro: a história de Maggie Fitzgerald é real?

Siga a Crônica de Cinema