Noivo Neurótico, Noiva Nervosa: um ponto de virada nas comédias românticas

IMAGINE SE O PERSONAGEM NEURÓTICO DE WOODY ALLEN TIVESSE NAS MÃOS UM... SMART PHONE!
Cá entre nós, Noivo Neurótico, Noiva Nervosa é um título ridículo! Suspeito que os distribuidores no Brasil tentaram manter algum vínculo com a imagem daquele Wood Allen destrambelhado, que nos fazia rir em O Dorminhoco, Bananas e Tudo o Que Você Sempre Quis Saber Sobre o Sexo - Mas Tinha Medo de Perguntar. Não perceberam que por meio dessa comédia romântica, o diretor nos oferecia uma abordagem diferente; exigia mais do espectador, não só pelo conteúdo afiado, mas também pela narrativa sofisticada. Penso que deveriam ter mantido o título original em inglês: Annie Hall.
O título faz referência ao nome da personagem, uma cantora em busca de oportunidades vivida por Diane Keaton; seu caso amoroso com Alvy Singer, o humorista judeu, deprimido e neurótico interpretado por Wood Allen, esfarela-se no decorrer do filme. Mas há uma sutileza: repare que a sonoridade do título em inglês é próxima à da palavra “anyhow”, que numa tradução livre soaria como “de qualquer jeito”. Denota uma certa... displicência.
Mas embora a relação entre os personagens aconteça de maneira desleixada no plano narrativo, o filme não tem nada de displicente; ao contrário, é uma produção inteligente, repleta de referências culturais e construída com diálogos bem redigidos. Aqui, Woody Allen é uma metralhadora giratória; dispara piadas contra tudo e contra todos. A narrativa não é linear e se vale de recursos teatrais; ao quebrar a quarta parede, o personagem entra em conversa direta com o espectador e estabelece com ele uma verdadeira cumplicidade. Enfim, é um filme inovador para a época.
Ah, lá no primeiro parágrafo, mencionei que há um segundo motivo que, volta e meia, faz-me recordar o filme Noivo Neurótico, Noiva Nervosa: é a cena da fila no cinema! Alvy Singer e Annie Hall estão impacientes, enquanto aguardam para entrar na sala de exibição. Ele, a ponto de explodir, irrita-se quando ouve um sujeito logo atrás, a se exibir para a namorada com fanfarronices sobre o seu conhecimento da sétima arte; quando o metido a intelectual começa a falar sobre Marshall McLuhan, o mais importante teórico da comunicação daquela época, Singer finalmente explode. Volta-se para a câmera e desmonta o farsante, explica que ele não entende nada do assunto. O sujeito vem se defender; diz que leciona sobre o tema na universidade, mas recebe o golpe de misericórdia quando Singer dá alguns passos e traz para a cena ninguém menos que o próprio Marshall McLuhan.
Observe, caro leitor, que não se trata de um ator a interpretar o filósofo. É o próprio McLuham que surge diante dos nossos olhos. Faz uma ponta no filme e interpreta a si mesmo. Ele confirma a afirmação de Singer e diz que o tal falastrão não entende nada sobre suas teorias e que nem ao menos deveria dar aulas na faculdade. Vitorioso, Singer olha para a câmera e dispara:
– Ah, se na vida real fosse assim!
Jamais esqueci essa cena. Quando assisti ao filme era estudante de comunicação e tinha que lidar com as ideias fascinantes de Marshall McLuhan. Woody Allen realizou meu sonho de encerrar uma discussão da forma mais taxativa que existe: apresentar como prova as palavras irrefutáveis do autor. Ri até não poder mais. Agora, no entanto, me vejo obrigado a reassumir meu lugar na plateia e retrucar para o diretor:
– Hoje em dia, a vida real é exatamente assim! Sua piada perdeu a razão de ser!
Digo isso porque um adolescente que eventualmente assista a Noivo Neurótico, Noiva Nervosa não verá graça alguma. Ora, para ele, bastaria sacar o smart phone e, com rápidos comandos de voz, ordenar a exibição de algum vídeo sobre as teorias do filósofo. Na verdade, nosso hipotético adolescente nem mesmo estaria numa fila de cinema.... Por isso, quando relembro a cena, o faço para comemorar e também para lamentar.
A impressionante ferramenta que nos deu acesso a todo e qualquer conhecimento, no momento em que ele é demandado, é motivo para festejar; as tarefas que tenho realizado com a ajuda dela ficaram mais leves e ágeis. De outro lado, a fartura de informações que nos alcança gerou em nós uma certa... displicência! Conhecimento é tratado feito commodity e as pessoas se afogam num caldo cultural formulado tão somente pelo gosto pessoal; só procuram saber ainda mais a respeito daquilo que já conhecem.
Na época de Annie Hall, informação e conhecimento eram valiosos demais. Hoje, circulam praticamente sem custos – cada um paga quando cede os direitos sobre sua privacidade. Só lamento que muitos não se incomodem quando os poderosos, que se apropriam do estado, tentarem cerceá-los ou controlá-los.
Resenha crítica do filme Noivo Neurótico, Noiva Nervosa
Ano de produção: 1977
Direção: Woody Allen
Roteiro: Woody Allen e Marshall Brickman
Elenco: Woody Allen, Diane Keaton, Tony Roberts, Carol Kane, Paul Simon, Janet Margolin, Shelley Duvall, Christopher Walken, Colleen Dewhurst, Donald Symington, Joan Newman, Mordecai Lawner e Marshall McLuhan
De fato Fabio nosso tempo passou mas quem viveu e conviveu nas décadas de 1970 e 1980, sente falta da mordacidade de Woody Allen em seus gloriosos filmes. Hoje a realidade é outra. Formidável seu comentário…
ResponderExcluirObrigado, Julio. O cinema daquela época é um registro da criatividade e do espírito de realização de toda uma geração.
ExcluirAmei sua crônica, e o filme é ótimo, tem mei umas tiradas horárias e muitas referências culturais, mas quanto à tradução, discordo um.pouco. A personagem Any Hall não tem nada de nervosa, e doce, inteligente e tranquila. Sem nada dd nervosa, mas ele é um pico dd ansiedade e neurose sei. Lógico que agora sabendo da referência do filme sobre Anne Hall, penso que deveriam mesmo deixar o título original. Não sabia. Obrigada por sua crônica tão enriquecedora.
ResponderExcluirObrigado pelo feedback! Quanto ao personagem de Woody Allen, ô sujeito neurótico! Não foi a toa que os distribuidores cunharam esse título esquisito!
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