O Palhaço: sublimando a crise existencial

Cena do filme O Palhaço
O Palhaço: filme dirigido por Selton Mello

SE HÁ ALGUM MOTIVO PARA FAZER CINEMA, É PARA REALIZAR BONS FILMES COMO ESSE

– Esse negócio de crise existencial é palhaçada – diria meu pai, emendando algum comentário politicamente incorreto sobre ter mais o que fazer ao invés de ficar ouvindo nhenhenhém de gente afrescalhada. Conhecendo o senso de humor dele, é claro daria um desconto. Esse era apenas o seu jeito de mostrar que preferia manter a mente ocupada com as demandas práticas da vida a remoer assuntos filosóficos.
        Não puxei ao meu pai. Filosofar e divagar são hábitos que trago desde que fui alfabetizado. Nesses momentos, nós, os sonhadores, ficamos vulneráveis ao assalto das dúvidas. Pior, levamos as dúvidas conosco e esbarramos nelas quando temos que tomar decisões cruciais: trocar o emprego estável e sufocante por uma aposta empreendedora, tornar-se coadjuvante no sonho de quem se ama para continuar seguindo juntos, assumir o fato de que as crianças já estão todas criadas... Crises existenciais não são engraçadas. Elas vêm com a insatisfação, com as angústias e ansiedades. Parece que dão um sumiço nos nossos propósitos. Parece que atiçam nossos conflitos internos.
        Benjamin, personagem vivido por Selton Mello em O Palhaço, filme que ele mesmo dirigiu em 2011, vive uma dessas crises de identidade – está atrás de uma, literalmente! Parece saber mais sobre Pangaré, o palhaço que incorpora no picadeiro, do que sobre ele mesmo. Nesse filme sensível, delicado e emocionante, salpicado de pitadas generosas de humor refinado, acompanhamos a jornada pelo seu mundo interior. Tentamos compreender suas dúvidas, insatisfações e angústias. Torcemos para que reencontre seus propósitos e resolva seus conflitos.
        Em O Palhaço, Benjamin tem uma vida atribulada fora do picadeiro. Filho de Valdemar (Paulo José), o verdadeiro dono do circo Esperança, é ele quem cuida das questões administrativas e da subsistência da pequena e hilariante trupe itinerante – composta por personagens típicos do mundo circense. De cidadezinha em cidadezinha, vagam pelo interior do Brasil dos anos 70, arrancando aplausos e trocados suficientes para manter o circo na estrada. Acontece que Benjamin está no seu limite. Quer largar tudo em busca de um sonho que ainda está muito embaçado na sua mente. E quando ele o fizer, o que será daqueles que dependem dele? O que será de seu pai, o velho palhaço que já não tem o vigor necessário?
        Na direção de arte e nos figurinos, na escolha das músicas, na beleza da fotografia e no ritmo envolvente, percebemos as boas influências do cinema italiano. Mas é no roteiro consistente e preciso que O Palhaço revela a força de um cinema autoral com muito a nos dizer. Selton Mello fez um trabalho brilhante, construindo uma narrativa singela e ancorada em elementos simbólicos e afetivos. O mundo do circo que ele retrata irradia autenticidade e nos apresenta a carismáticos e adoráveis personagens.
        Selton Mello assina o roteiro em parceria com Marcelo Vindicatto, roteirista que já havia colaborado com ele no seu primeiro filme, Feliz Natal. O diretor conta que a ideia para o filme nasceu de uma forte crise de insatisfação que estava vivendo como ator, que o pôs angustiado. Imaginou os efeitos de uma tal crise de identidade sobre um palhaço que precisa arrancar risos, mas não consegue encontrar motivos para rir. No processo de criação, ele e Vindicatto partiram do primeiro tratamento para a realização de leituras e ensaios com os atores, que contribuíram com ideias para seus personagens. Além disso, fizeram uma pesquisa minuciosa sobre o mundo do circo.
        O Palhaço segue uma narrativa linear, mas estruturada a partir do campo visual, o que de certa forma é um convite para que o espectador participe, encontrando momentos para fazer suas próprias reflexões. Ao final, temos uma história leve, mas densa, com passagens de puro humor e uma mensagem edificante. É uma história com alcance universal e muito bem roteirizada. Certamente contribuiu para elevar o nível criativo do cinema brasileiro. E ainda nos trouxe como bônus a presença de atores icônicos, há muito esquecidos do grande público, como Moacyr Franco e Ferrugem, além do talento de Paulo José, Larissa Manoela, Tonico Pereira e de uma trupe diversa e impagável.
        Ainda bem que Selton Mello conseguiu sublimar sua crise de identidade e direcionar seu talento e energia criativa para o cinema. Todos nós saímos ganhando!
 

Resenha crítica do filme O Palhaço

Data de produção: 2011
Direção: Selton Mello
Roteiro: Selton Mello e Marcelo Vindicatto
Elenco: Selton Mello, Paulo José, Larissa Manoela, Danton Mello, Giselle Mota, Teuda Bara, Álamo Facó, Cadu Fávero, Erom Cordeiro, Hossen Minussi, Maira Chasseroux, Thogun, Michelle Martins, Bruna Chiaradia, Renato Macedo, Tony ... Meio-Quilo, Pritty Borges, Fabiana Karla, Jorge Loredo, Jackson Antunes, Moacyr Franco, Tonico Pereira, Ferrugem, Maria Manoella, Emílio Orciollo Netto, Martha Meola, Phil Miler, Cico Caseira, Flávio Pardal, Thiago Falango, Yakara Piotto, Seu Hudi, Hudson Rocha, Alessandra Brantes, Nilton Castro, João Marcelo, Fernando Reis, Farinha, Raoni Seixas e Alex Sander

Comentários

  1. Texto incrivelmente sensível e claro desta produção. Concordo plenamente!

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    Respostas
    1. Sim, o roteiro de O Palhaço esbanja sensibilidade! Adoro esse filme!

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