A Travessia: uma façanha real

Cena do filme A Travessia
A Travessia: filme dirigido por Robert Zemeckis

UM EQUILIBRISTA COM ALMA E VISÃO DE ARTISTA

Quando o francês Philippe Petit estendeu secretamente seu cabo de aço entre as coberturas dos dois maiores edifícios até então já construídos pelo homem e caminhou sobre ele com audácia e destemor, realizou uma façanha única. A imagem do equilibrista sereno e seguro, desafiando a finitude – pontinho vitorioso maculando um céu monótono – ganhou status de verdadeira instalação artística. Nada de atração circense, nada de espetáculo mambembe. A intervenção urbana que espantou o mundo naquele ano de 1974 foi a visão de um artista ousado tornada realidade.
        Usar a palavra equilíbrio para se referir a Philippe Petit pode parecer um trocadilho, mas há que reconhecer: foi o que ele promoveu ao unir competência técnica e consciência artística para assumir seu lugar no mundo. No topo dele!
        Ocorre que esse topo do mundo eram as torres gêmeas do World Trade Center em Nova Iorque, na época da sua inauguração, quando representavam a pujança do sistema capitalista e a capacidade humana de se superar. Depois que elas ruíram – eternizando o feito de Petit como único – o topo do mundo mudou de lugar e as próprias torres passaram a simbolizar uma era turbulenta, que já não pertencia ao equilibrista transgressor.
        No documentário O Equilibrista, realizado em 2008 por James Marsh, Philippe Petit se mostra por inteiro, revelando a visão poética que o norteou e a construção estética que usou em sua empreitada – embora o grande público só consiga enxergar o equilibrista insano. Ainda que tenha ganho o Óscar de melhor documentário por seu filme brilhante, baseado no livro autobiográfico de Philippe Petit, James Marsh não conseguiu evitar: deixou que o fantasma das torres gêmeas viesse assombrar, embaçando de significados o feito artístico do equilibrista.
        Robert Zemeckis, no seu filme A Travessia, de 2015, foi mais adiante: deixou só o Petit equilibrista de circo. Retratou apenas o jovem impulsivo e transgressor, mais interessado nos holofotes e movido por uma espécie de teimosia infantil. Deu mais importância às suas aptidões circenses e se interessou mais nas artimanhas – dignas de assaltantes de banco – usadas pelo equilibrista e sua trupe de cúmplices para se apoderar do topo das torres gêmeas.
        O resultado é um filme... incompleto. Ainda assim é um ótimo filme. Em se tratando de Robert Zemeckis, não poderíamos esperar por menos. Assertivo, o cineasta encontrou um leitmotiv: trazer para o espectador a oportunidade de viver uma experiência vertiginosa. Tirar-lhe o chão e o fôlego, enquanto deixa que experimente a sensação de caminhar nas nuvens sobre uma reles corda. É claro, A Travessia só poderia ser um filme em 3D, que chega nadando em efeitos digitais realistas.
        Mas o cinema de Zemeckis é feito de personagens vistosos e tramas que se costuram para manter o interesse do espectador. O diretor põe o protagonista na posição de cicerone, narrando seu feito com incontida vaidade, sempre enaltecendo o espetáculo. E jamais deixa de mostrar os incontáveis fatores de risco que, de um momento para outro, poderia pôr tudo as perder. Assim, apesar de saber que a vitória e suas recompensas são inevitáveis, seguimos torcendo para que a aventura acabe bem.
        Joseph Gordon-Levitt, na pele de Philippe Petit, se sai muito bem. O ator ressalta a aura de artista que o imaginário do público enxerga ao redor de todo francês e consegue alguma elegância no seu sotaque sutil. Já Ben Kingsley, como Papa Rudy, em alguns momentos sucumbe aos exageros, mas é tudo em nome do espetáculo circense. Embora fique muito claro que se trata de anglo-saxões emulando franceses, há um tom de homenagem que consegue cativar.
        No filme A Travessia, a história real de Philippe Petit pode ser resumida em uma curta sinopse. Seu feito circense, no entanto, é recriado de modo arrebatador e convincente, com hábeis recursos digitais e uma direção de arte impecável. Já o legado artístico do sujeito que se fez de intervenção urbana, arrebatou a atenção do mundo e estimulou reflexões acerca do efêmero, do sentido da existência e da própria experiência estética... Bem, esse terá que ser apreciado em outras mídias.

Resenha crítica do filme A Travessia

Ano de produção: 2015
Direção: Robert Zemeckis
Roteiro: Robert Zemeckis
Elenco: Joseph Gordon-Levitt, Ben Kingsley, Charlotte Le Bon

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