Ladrões de Bicicleta: valores de pai para filho

Cena do filme Ladrões de Bicicleta
Ladrões de Bicicleta: filme dirigido por Vittorio De Sica

NEO-REALISMO NAS MÃOS DE UM DIRETOR COM TOTAL CONTROLE DA ESTÉTICA

Quando assisti a Ladrões de Bicicleta, dirigido por Vittorio De Sica em 1948, foi no final dos anos 1970. Já era, portanto, um filme velho – ao menos do ponto de vista de um estudante de 17 anos, hipnotizado pelo cinema vibrante que se fazia na época. Aproveitei uma mostra sobre o neo-realismo italiano apresentada no cineclube da minha escola. A sessão foi revestida com um certo verniz intelectual e teve direito a debate no final, além de entediantes e demoradas interpretações, eivadas de clichês ideológicos, sobre o alcance social da obra e blablablá...
        Na saída, o que trouxe comigo foi a história tocante de um pai tentando fazer o certo e um filho de mãos agarradas ao exemplo, apertando o passo para alcançar o que pudesse aprender. Esteticamente, é uma obra marcante, com a narrativa ancorada no discurso visual e realizada com grande sensibilidade artística. Além da alma dos personagens, a fotografia elaborada com cuidado captou o espírito do seu tempo, mostrando uma Itália recém liberta do fascismo e ainda desorientada pelas bordoadas da guerra – e ainda assim voltada para o belo.
        Quem olha Ladrões de Bicicleta com preocupações políticas, enxerga a tentativa de registrar com realismo uma sociedade em luta para resolver suas contradições. Porém, em primeiro plano, quem está à frente das cenas com multidões de trabalhadores oprimidos pelo desemprego e pelas injustiças sociais é sempre o indivíduo. Os que acreditam que não há esperança fora do coletivo, podem até pedir que ele saia da frente – está atrapalhando! Mas é o indivíduo, suas emoções, suas crenças e seus valores, que a fotografia em preto e branco nos revela em cada cena.
        Para os que ainda não se animaram a visitar Ladrões de Bicicleta, cabe uma sinopse antes de continuar. O filme conta a história de Antônio (Lamberto Maggiorani), um trabalhador desempregado, casado e pai de dois filhos, que finalmente consegue uma vaga de colador de cartazes, desde que, é claro, tenha uma bicicleta. Num último esforço hercúleo, a família penhora os lençóis e recupera a bicicleta que estava penhorada. No primeiro dia de trabalho, Antônio tem a bicicleta – 
o que poderia haver de mais essencial naquele momento? – roubada! A partir daí, é sua busca por toda a Roma, na companhia do filho, Bruno (Enzo Staiola), que nos ocupa e nos prende a atenção.
        Ladrões de Bicicleta surpreende pelo ritmo ágil e por suas cenas bem elaboradas, com mise en scène calculada. Em se tratando de uma obra neo-realista, esperava algo beirando o improviso, mas Vittorio De Sica estava disposto a fazer cinema e não se enquadrar em rótulos. Seguiu uma prática já consolidada no cinema italiano, valendo-se de locações reais em espaços abertos, ao invés de cenários construídos. Sua câmera tem a espontaneidade que costumamos ver em documentários, captando preferencialmente a luz natural, mas é firme e sempre bem posicionada.
        O roteiro de Ladrões de Bicicleta foi baseado no romance de Luigi Bartolini – Ladri di Biciclette, escrito em 1947 – um ano antes! A conversão para as telas foi resultado de um processo rápido e colaborativo, cujo principal mérito foi o de ter sido escrito por gente que tinha a câmera em mente, o tempo todo. De Sica trabalhou em reuniões frequentes com uma equipe numerosa, incluindo nomes que nem foram creditados. Cesare Zavattini assumiu a frente e foi o responsável pelo roteiro final, filmado pelo diretor. O elenco é outro elemento que traz personalidade à obra: foi composto por atores não profissionais.
        Um dos filmes mais premiados de seu tempo, inclusive com o Óscar de melhor filme estrangeiro, Ladrões de Bicicleta usa a relação entre um pai e seu filho para expor uma sociedade centrada no próprio umbigo, onde pessoas atormentadas se distraem daquilo que de fato interessa. Anestesiadas pelas injustiças, ocupam os lugares que julgam seus e perdem a capacidade de ter empatia. Descuidam dos valores que mais prezam. Seguem ao arrasto das multidões.
        A busca pela tal bicicleta vai nos levando por paisagens que não fazem parte do circuito turístico. Revela uma Roma plástica e sedutora, habitada por comerciantes, feirantes, atores de teatro, videntes, músicos itinerantes, frequentadores de restaurantes, amantes do futebol... A jornada de Antônio e Bruno é repleta de dor e angústia, mas topa com passagens de humor. E vai acabar onde os filmes de Hollywood dificilmente chegam: num dilema moral, urgente e definidor, que traz a cada espectador a oportunidade de extrair sua própria lição.
        Ladrões de Bicicleta, um ótimo filme para se revistar de vez em quando.

Resenha crítica do filme Ladrões de Bicicleta

Ano de produção: 1948
Direção: Vittorio De Sica
Roteiro: Vittorio De Sica, Cesare Zavattini, Suso Cecchi D'Amico, Gerardo Guerrieri, Oreste Biancoli e Adolfo Franci
Elenco: Lamberto Maggiorani, Enzo Staiola, Lianella Carell e Vittorio Antonucci

Comentários

  1. É...mas é o indivíduo que compõe os grupos sociais, ou como você disse; o coletivo. " sociedade não existe." Já disse a Thatcher no entanto o filme mostra como uma sociedade alternativa(Roma), como o indivíduo atomizado tem pouca força contra o social estabelecido e ideologizado.

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    1. Isso mesmo! O coletivo é a soma de indivíduos. Ela só se expressa a partir da soma de expressões individuais.

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  2. Belíssimo comentário de um filme antigo, muito mais antigo mesmo, e eu ainda não assisti. Sua narrativa do filme me despertou interesse e vou procurar. Realmente, sem o coletivo, a sociedade não anda, não existe....Sempre de um texto, seja ele sobre qualquer coisa, eu tiro alguma coisa boa que valoriza meu caminho.

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    1. O problema é quando a expressão do coletivismo oprime os indivíduos. Temos quer tomar cuidado para não virarmos um coletivo de... robôs!

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  3. Não assisti mas ouvi falar

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