Projeto Flórida: alegrias e tristezas, fantasia e realidade


Cena do filme Projeto Flórida
Projeto Flórida: filme dirigido por Sean Baker

CINEMA INDEPENDENTE E INSPIRADO, BEIRANDO O EXPERIMENTALISMO

Quando o cinema independente dá as caras na TV por assinatura e nos serviços de streaming, dá para sentir o sopro de renovação entrando pela sala. Ludy e eu estávamos acomodados no sofá depois do jantar, indecisos sobre o que assistir, quando Projeto Flórida, filme de 2017 dirigido por Sean Baker, entrou por uma brecha e agarrou nossa atenção. Diferente, inteligente, emocionante e envolvente, conquistou mais dois admiradores e motivou este cronista a pesquisar sobre a produção para engordar o acervo da Crônica de Cinema.
        Projeto Flórida não segue os cânones narrativos de Hollywood, estabelecidos a partir das formulas shakespearianas já amplamente testadas e aprovadas nas bilheterias. A história não vem contada em três atos e as cenas não são enfileiradas em blocos de tensão e resolução. O que há é uma fluidez natural, que oferece o mínimo de exposição e o máximo de drama – não daquele tipo que arrebata e comove, mas aquele que consome nosso tempo e nos ocupa com preocupações. Como faz a vida! Trata-se de um filme emocionante e na maior parte do tempo alegre, que aborda uma temática sensível e delicada: o abandono.
        O filme conta a história de Moonee (Brooklynn Prince), uma garotinha de seis anos que vive com a jovem mãe Halley (Bria Vinaite) no Magic Castle Inn, um motel espalhafatosamente roxo localizado próximo da Disney World em Orlando, na Flórida. O local reúne uma comunidade de hóspedes permanentes, gente que vive em situação de quase indigência, à margem do sistema econômico que movimenta o entorno do mundialmente famoso parque de diversões. Moonee e seus amigos da mesma idade circulam livremente pela região, imersos na própria infância e alheios à realidade que um dia acabará se impondo. Ocupada demais com suas fantasias, ela não se dá conta de que é a prostituição e os trambiques da mãe que pagam o aluguel semanal. Não se dá conta do quanto está desprotegida. Não se dá conta do que lhe é sonegado em valores e educação por causa das carências e inconsequências da mãe. Sabe apenas que o seu cotidiano é marcado pela presença constante de Bobby Hicks (Willem Dafoe), o gerente zeloso que olha não apenas por ela e sua mãe, mas por todas a crianças, adultos e esboços de família que habitam aquele motel espalhafatosamente roxo às portas da Disney.
        O roteiro foi escrito pelo diretor Sean Baker em colaboração com o roteirista Chris Bergoch. O dois já haviam trabalhado em conjunto no filme Tangerine, de 2015, que explodiu em sucesso na cena independente – inteiramente filmado com câmeras de celular, mergulha no universo LGBT para contar a história de uma prostituta transexual que descobre a traição do namorado com uma mulher. Para filmar Projeto Flórida, Baker abandonou o celular e contou com o trabalho competente de Alexis Zabe, que faz uma direção de fotografia inspirada, alternando a câmera na mão com enquadramentos mais elaborados.
        Sean Baker faz cinema experimental. Sua história apenas segue uma série de eventos na vida dos personagens, sem um enredo estruturado; há, porém, um claro sentido narrativo. Engana-se quem pensa que Projeto Flórida é fruto do improviso; apesar do clima de espontaneidade, suas cenas foram todas roteirizadas. O filme foi rodado num motel de verdade, em pleno funcionamento, com muitos dos seus moradores atuando na figuração; o elenco é composto por atores sem experiências anteriores e as crianças foram deixadas livres para se divertir e extravasar a energia criativa.
        A única presença profissional é a de Willem Dafoe. Ao ler o roteiro de Sean Baker e Chris Bergoch, o ator consagrado, com papéis marcantes em incontáveis produções de sucesso, decidiu embarcar no projeto; gostou da história, da visão do diretor e da oportunidade de exercitar um cinema vibrante e criativo. No papel de gerente do Magic Castle Inn ele se coloca como um outsider e empresta seus olhos ao espectador, enquanto observa aquele mundo peculiar com certo distanciamento.
        O cinema contemporâneo de Sean Baker é verdadeiramente autoral, de um modo como poucos cineastas conseguem; ele realizou a edição final do seu filme e assumiu o total controle criativo. Como resultado, temos uma obra que captura a alegria e a impetuosidade ingênua da infância, colorida e brilhante a irradiar energias positivas – e aí, nos faz viajar de volta aos nossos tempos de criança. Mas no final  desfaz a fantasia; joga na nossa cara uma realidade triste, onde a carência de valores impele aos erros, fere e relega ao abandono.
        Por associação, lembrei do filme A Criança, produção belga de 2005 dirigida por Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne, que esbarra num tema semelhante. Mas isso já é assunto para uma próxima crônica.

Resenha crítica do filme Projeto Flórida

Ano de produção: 2017
Direção: Sean Baker
Roteiro: Sean Baker e Chris Bergoch
Elenco: Brooklynn Prince, Christopher Rivera, Valeria Cotto, Aiden Malik, Bria Vinaite, Willem Dafoe, Sandy Kane, Caleb Landry Jones e Macon Blair

Comentários

  1. Vi o filme, gostei muito e endosso plenamente sua visão crítica sobre o filme. Para mim uma bela surpresa…

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    1. Obrigado, Julio. Também me surpreendi com o filme. Atiçou minha vontade de assistir a bons filmes. Vou continuar buscando!

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  2. Sim, o tem principal sendo o abandono, e quando filme acabou me senti assim também. Foi duro demais! ótimo! Vlw

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    1. O abandono é sempre um tema sensível e nos pega em diferentes momentos.

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  3. Acho esse filme excepcional. Todo o elenco em absoluto estado de graça, nem parece que só Dafoe é o único profissional. Aquela Disneylândia do final é pra destroçar o pouco que sobrou de nós após acompanhar as histórias do filme.

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    1. Ah, o diretor acertou na mosca ao fechar suas lentes nos personagens, especialmente na garotinha que irradia inocência e espontaneidade.

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