Nomadland: a vida sem residência fixa

Cena do filme Nomadland
Nomadland: filme dirigido por Chloé Zhao

LIBERDADE, UM BOM MOTIVO PARA METER O PÉ NA ESTRADA

Há um tom de ironia na palavra “nomadland”, que dá título ao filme vencedor do Óscar de 2021. Numa tradução apressada, entendemos que se trata de uma “terra dos nômades”. Ora, nômades, por definição, não têm terra! Seguem errantes em busca de recursos e jamais se fixam. Logo, o termo deve ter sido cunhado para se referir a uma suposta terra imaginária, de sonhos e fantasias, como em “Disneyland”, ou “La La Land” – para citar outro ganhador do Óscar. Esse raciocínio me levou a supor qual seria, afinal, o viés do filme dirigido pela cineasta Chloé Zhao: ressaltar o quão melancólica e infeliz é a escolha dos que se afastam do sistema econômico e se agarraram a uma vida nômade, na tentativa inútil de alcançar uma liberdade... utópica!
        Ora, liberdade nada tem de utopia. É um conceito abstrato que emana da razão. É um direito fundamental e seu exercício é básico para que o ser humano seja feliz. Essa tentativa deliberada de dissociar os conceitos de liberdade e felicidade foi o motivo que me manteve desinteressado em Nomadland. Porém, os autênticos cinéfilos só podem formar opinião depois de assistir aos filmes, então, me rendi à curiosidade e recorri ao serviço de streaming. Apertei o play e... fui surpreendido!
        Sim, há muito do viés insinuado pelo título – como se a busca pela liberdade não fosse importante o suficiente para legitimar escolhas radicais. Mas há também cinema de qualidade, construído a partir de uma elaborada narrativa visual e concentrado em expor uma protagonista interessante e muito bem interpretada.
        Infelizmente, Nomadland não está interessado em aprofundar as discussões filosóficas sobre a liberdade. Mesmo assim, fala dela ao mostrar pessoas reais, que fizeram escolhas difíceis em algum momento da vida e seguem de cabeça erguida, preocupadas em descobrir o que de fato as escraviza. A solidão é companheira constante nas estradas. A falta de conforto, um entrave superável – ainda que espante o espectador esparramado no sofá diante da televisão. As histórias pregressas que motivaram a opção dos personagens pela vida nômade são mistérios que atiçam nossa curiosidade e nos conduzem atentos até o final do filme.
        Nomadland acompanha um ano na vida de Fern (Frances McDormand), uma personagem fictícia que fica desempregada em razão da crise no mercado de construção em 2011. Viúva ainda de luto, ela decide seguir vivendo nas estradas, morando em uma van. Para sobreviver, busca empregos sazonais: num centro de distribuição da Amazon, numa farmácia e também durante a colheita de beterraba em Nebraska. Acolhida pela comunidade nômade, que se revela bastante numerosa, ela faz amizade com Linda May, Charlene Swankie e Bob Wells (interpretados por eles mesmos). Também se envolve com Dave (David Strathairn), um ex-mineiro com quem estabelece um hesitante relacionamento.
        O filme é baseado no livro de não ficção intitulado Nomadland: Sobrevivendo aos Estados Unidos no Século XXI, escrito em 2017 por Jessica Bruder. Trata-se de uma imersão jornalística no mundo da comunidade nômade formada por idosos aposentados, que depois da crise de 2008 passaram a viver em trailers e ocupar os estacionamentos à beira das estradas. A autora percorreu quase 25 mil quilômetros em sua própria van, acompanhando a ex-excutiva Linda May e a blogueira Charlene Swankie, além de Bob Wells, o homem que se tornou o guru da van – uma celebridade do YouTube com barba de Papai Noel – que estimula e ensina os macetes da vida nômade.
        A atriz Frances McDormand leu o livro e decidiu produzir uma adaptação para as telas. Convocou a cineasta chinesa Chloé Zhao, aclamada na cena do cinema independente, que escreveu o roteiro e encarou a empreitada como um projeto de imersão. Ela e outros membros da equipe – Frances McDormand inclusive – viveram em vans enquanto o filme era rodado nas paisagens áridas de Dakota do Sul, Nebraska, Nevada, Califórnia e Arizona. Foi da diretora a ideia de escalar May, Wells e Swankie para interpretar a si mesmos, criando uma atmosfera quase documental para o seu filme.
        Na sua versão para o cinema, Nomadland ganhou profundidade no momento em que Chloé Zhao decidiu centrar as lentes numa personagem fictícia. Ao dramatizar o arco emocional de Fern, uma mulher madura, avessa à sociedade convencional e à vida familiar, criou a oportunidade para que Frances McDormand mostrasse sua incrível desenvoltura na frente das câmeras. O resultado é um filme poético, temperado com poucos momentos de doçura e doses acentuadas de melancolia. Uma obra visual, que se esbalda diante da paisagem ampla – a mesma que nos acostumamos a apreciar nos westerns. No Óscar, levou as estatuetas de melhor filme, melhor direção e melhor atriz.
        O que colaborou para acentuar a atmosfera de introspecção e melancolia do filme foi em parte a música intimista de Ludovico Einaudi. A outra parte ficou por conta da edição, executada pela própria Chloé Zhao, que ditou o ritmo da obra e reforçou seu caráter autoral.
        A verdade é que assistir a Nomadland não desfez minha implicância inicial. Ao contrário! Seus realizadores tentam insinuar que a melancolia e a infelicidade irradiadas pelos personagens surgem de uma inútil busca pela liberdade, não das motivações psicológicas que os levaram ao nomadismo. E chegam a tratar a liberdade como um prêmio de consolação, por terem sido excluídos do sistema. Ao contrário! É nos momentos de celebração da verdadeira liberdade, quando os personagens se agarram aos seus valores éticos, que conseguimos enxergar belos lampejos de felicidade. Não fosse por esse viés, o filme poderia ganhar muito em leveza, bom humor e... felicidade!

Resenha crítica do filme Nomadland

Título original: Nomadland
Título em Portugal: Nomadland - Sobreviver na América
Ano de produção: 2020
Direção: Chloé Zhao
Roteiro: Chloé Zhao
Elenco: Frances McDormand, David Strathairn, Linda May, Charlene Swankie e Bob Wells

Comentários

  1. Eu também acho que faltou alguma coisa no filme. O assisti quase por obrigação e pelo trabalho da Francis, cada vez melhor.

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    Respostas
    1. Sim, a atriz partiu de um tema que a interessou e com a ajuda da diretora, conseguiu estabelecer uma personagem interessante. Mas penso que o apego ao material documental limitou o seu alcance dramático. Se tivesse deixado fluir a energia ficcional, quem sabe poderia surpreender o espectador, ao invés de apenas cooptá-lo!

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