Ataque dos Cães: entenda o significado do ponto de virada desse western sombrio

Cena do filme Ataque dos Cães
Ataque dos Cães: filme dirigido por Jane Campion

UM ESPETÁCULO AUDIOVISUAL REFINADO E FLUENTE

Então, com a próxima temporada do Óscar atiçando a sede por indicações, eis que os serviços de streaming se animam a encher nossas telas com cinema de verdade. Ataque dos Cães, filme de 2021 escrito e dirigido pela cineasta neozelandesa Jane Campion é um filme e tanto. Um espetáculo audiovisual que nos traz um melodrama sólido, com narrativa fluente, atuações marcantes, uma temática envolvente e vocação para ensejar diferentes interpretações. Para formar uma opinião crítica a respeito dessa produção é preciso ponderar diferentes elementos. Primeiro, vamos começar falando da diretora.
        Jane Campion tornou-se célebre depois que dirigiu o filme O Piano em 1993, o que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes – a primeira mulher a receber o prêmio – e o Óscar de melhor roteiro original. Credenciada como grife de cinema criativo e maduro, sua assinatura nos créditos é motivo suficiente para dar atenção a esse seu novo filme. Mas, dessa vez, Jane Campion não vem com uma história criada por ela. Faz a adaptação para as telas de um romance lançado em 1967 pelo escritor americano Thomas Savage, intitulado The Power of the Dog. Esse é o segundo elemento a considerar.
        Thomas Savage, dono de uma prosa áspera, econômica e um tanto sombria, era conhecido por seus romances do gênero western. Sua obra estava esquecida, até que, em 2001, uma nova edição desse seu romance foi lançada, trazendo um posfácio da escritora Annie Proulx, autora da coletânea de contos Close Range: Wyoming Stories, cuja história intitulada Brokeback Mountain foi adaptada para o cinema pelo cineasta Ang Lee. O livro chegou às mãos de Jane Campion, que viu potencial na trama passada na década de 1920, contando a história dos irmãos Phil e George Burbank – esbarrando novamente no tema da sexualidade dos caubóis. Ela batalhou e conseguiu os direitos da obra.
        O roteiro escrito por Jane Campion para o filme Ataque dos Cães é fiel ao espírito do romance original, embora tenha omitido a parte inicial. Vejamos uma rápida sinopse. Em 1925, Phil (Benedict Cumberbatch) e George (Jesse Plemons) são prósperos fazendeiros vivendo numa pequena cidade em Montana, comprada por seus pais endinheirados. Phil, o irmão mais velho, se dedica ao trabalho braçal na fazenda. George é um sujeito simples e hábil com números. Phil demonstra inteligência e cultura, mas é claramente homofóbico. George cultiva modos refinados, mas é um solitário. Phil odeia Rose Gordon (Kirsten Dunst), dona de uma pousada e viúva de um médico que se enforcou. George se apaixona por ela e os dois se casam. Phil humilha publicamente o filho de Rose, Peter (Kodi Smit-McPhee), por seus modos afeminados. George banca os estudos do rapaz numa escola de medicina e traz a nova esposa para dividir o mesmo teto com o problemático Phil. Os conflitos são inevitáveis. Quando o jovem Peter vem passar as férias na fazenda e encontra a mãe entregue ao álcool, só tem um objetivo em mente: defendê-la e pôr fim aos maus tratos. Então vem o ponto de virada! Seu comportamento muda quando descobre que Phil é, na verdade, um enrustido. Agora o que vemos é um jogo de dissimulações, que não poderá terminar bem.
        O filme Ataque dos Cães examina a projeção da masculinidade à luz dos preconceitos reinantes nos anos 1920, mas é principalmente uma história sombria sobre vingança. Jane Campion soube dar a ela um tratamento poético, primeiro por meio das belíssimas imagens fotografadas por Ari Wegner – não só das paisagens exuberantes, mas também dos cenários criados com preciosismo gráfico. Há também incontáveis momentos de contemplação e silêncio, que se tornam eloquentes ao som da trilha sonora assinada por Jonny Greenwood, guitarrista da banda Radiohead, que caprichou nos arranjos de cordas e violões.
        Um ponto importante que descobri sobre o filme Ataque dos Cães diz respeito justamente à parte inicial do romance, que a diretora omitiu na sua adaptação. Nela o autor Thomas Savage narra a trajetória do médico John Gordon, marido de Rose e pai de Peter. Os motivos do seu suicídio ficam claros para o leitor: ele se desentendeu com seu amigo de infância, o problemático Phil Burbank, que convocou seus vaqueiros para aplicar-lhe uma surra terrível. O médico jamais se recuperou fisicamente. Se entregou ao álcool e terminou se enforcando. Seu corpo foi encontrado pelo filho.
        Portanto, percebi que ao contrário de nós, espectadores, os leitores de Ataque dos Cães têm uma noção mais apurada das motivações que guiam os personagens. No entanto, devo encerrar esse comentário nesse ponto, sob pena de gerar spoilers indevidos. Ressalto apenas que há motivos de sobra para conferir também o romance de Thomas Savage.
        Também acho desnecessário ressaltar aqui a excelente atuação de todo o elenco, com destaque para Benedict Cumberbatch. Tenho certeza de que a mídia continuará falando muito a esse respeito para destacar as virtudes de Ataque dos Cães. Assim, prefiro aproveitar meu último parágrafo para comentar sobre o significado do curioso título desse filme, já que o espectador não assistirá a nenhum personagem sendo atacado por cães. Trata-se de uma expressão que aparece num salmo da Bíblia do Rei Jaime, adotada pela igreja anglicana, que Peter aparece lendo em determinada cena. O poder do cão é o poder da matilha, que se impõe ao indivíduo, em detrimento das suas escolhas e dos seus direitos. É o poder do coletivismo oprimindo a menor de todas as minorias que existe: o indivíduo. O personagem encontra nos versos desse salmo um estímulo para combater o mal, simbolizado pelo poder dos cães, que está atacando sua mãe.

Resenha crítica do filme Ataque dos Cães

Título original: The Power of the Dog
Ano de produção: 2021
Direção: Jane Campion
Roteiro> Jane Campiom
Elenco: Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemons, Kodi Smit-McPhee, Thomasin McKenzie, Genevieve Lemon, Keith Carradine e Frances Conroy

Comentários

  1. Estava decidida a não ver o filme mas vc me convenceu a vê-lo . Excelente crônica ! Obrigada!

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    1. Ah, muito obrigado! Esse é um ótimo filme, que exige do espectador. É instigante. Espero que goste.

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  2. Amei sua crônica. Somente depois de lê -la, entendi vários detalhes desse filme que gostei muito. Sua análise é perfeita.

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  3. Muito boa sua crônica sobre um filme que é uma delícia pros olhos e ouvidos. Gostei de saber do motivo do suicídio do pai de Peter mas acho que não saber também não subestima a surpreendente atitude do filho cuidando da "felicidade" de sua mãe.

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    1. Concordo, Nilva. A adaptação não tirou a força da obra, mas criou uma experiência diferente para quem assiste ao filme.

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  4. Parabéns pela crônica! Gosto do seu olhar abrangente sobre as obras e gosto de lê-las depois de ver os filmes, pra ver ver se tive a “percepção” correta! O filme é espetacular

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    1. Muito obrigado, Sandra Roberta. É ótimo poder compartilhar informações com quem curte cinema. Também gosto de assistir aos filmes sem ter informações prévias. É uma forma de manter o espírito aberto para as novidades!

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  5. Parabéns pela crônica!
    A primeira cena do filme direcionou meu olhar para o que estava por vir. Mas a informação sobre a morte do médico faz a diferença!

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    1. Obrigado, Nina. O filme me instigou e me obrigou a pesquisar!

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  6. Bacana saber desse detalhe do Livro, realmente dá mais 'motivação'.
    O filme primeiramente me chamou atenção por eu gostar dos atores (Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst). Mas eu estava me enrolando para assistir. Quando eu soube que o filme traria o assunto da sexualidade, isso me motivou a assisti-lo. Eu gostei muito da presença do ator Jesse Plemons, por achar ele muito carismático. Achei apenas uma pena que do meio do filme pra frente ele fica muito sem importância.
    Eu jurava que clímax do filme teria a ver com 'alguém sendo flagrado', mas me surpreendeu bastante que não foi isso. Achei a virada bem surpreendente de fato.

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    1. Sim, a presença do ator Benedict Cumberbatch é o elemento que primeiro chama a atenção para filme. O segundo elemento que atrai é a fotografia.

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  7. UM FILME ESTIMULANTE, QUE TE PRENDE, DO ESTILO COM OLHAR E SENTIMENTO PARA CADA DETALHE, CADA FALA, CADA OLHAR!

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    1. Sim, nesse ponto a diretora soube explorar muito bem o universo criado pelo autor do romance.

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  8. Salve. Estou conhecendo hoje este espaço e te cumprimento com entusiasmo. Você tem paixão pelo que faz, escreve muito bem e tem muita sensibilidade e profundidade!

    Mas olhe só: sem ler ou consultar nada, apenas atento ao Salmo lido no filme, eu achei que o poder do cão é simplesmente o Mal, simbolizado pelo que seria a influência do "diabo" (Cão) sobre o Homem, no filme traduzido em várias frentes: o maltrato da mulher, o alcoolismo dela, o homossexualismo enrustido, a vingança, enfim...jamais faria associação com a prevalência do coletivo (matilha) sobre o indivíduo! Preciso refletir...Li também sua crônica sobre "A escavação", arrepiante, porque o filme me tocou bastante. Abraço e parabéns novamente. E vida longa por aqui! César

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    1. Ah, Cesare, sou muito grato por seu feedback. Certamente, as analogias ao redor de um salmo da bíblia são sempre focadas na religião. O que fiz foi expandir isso de acordo com minha visão pessoal e, é claro, lançar no ar uma provocação para estimular o debate. É muito bom ter você por aqui. Um abraço!

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  9. Muito bom, meu favorito pra ganhar o Oscar, mas infelizmente foi preterido. Somente vejo um defeito que para os poucos conhecedores da cultura americana e dum meio rural da Montana dos anos 20, não há armas de espécie alguma nesse universo de vaqueiros! Vejo aí uma falha na autencidade, porque creio que a autora é uam inglesa.

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    1. Certamente a visão da diretora influenciou na reconstituição da época. Mas, como você mesmo disse, o filme é muito bom. Eventuais deslizes são facilmente perdoáveis!

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  10. Excelente critica, trouxe pontos esclarecedores. Acabo de assistir o filme pela segunda vez e lendo suas colocações abriu um horizonte de entendimento na minha cabeça. Obrigado.

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    1. Ah, fico muito grato pelo seu feedback. É muito bom poder trocar experiências com os cinéfilos!!!!!

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