Sabor da Vida: tudo ao redor tem algo a nos dizer!

Cena do filme Sabor da Vida
Sabor da Vida: dirigido por Naomi Kawase

QUANDO SONS E IMAGENS GANHAM EXPRESSÃO LÍRICA

Estava ansioso para retomar as crônicas de cinema, depois de passar pela Covid. A variante que Ludy e eu contraímos foi aquela menos agressiva, que se alastrou na virada do ano, mas não podemos dizer que as duas últimas semanas foram aproveitadas como férias. Nada disso! Esse vírus é um pé-no-saco! Febre, dor no corpo, cansaço permanente, tosse... Para complicar, percebi diminuição na acuidade visual e senti dificuldade para fixar os olhos numa tela ou página de livro. Pode haver maior perda de tempo? Mesmo assim, consegui assistir a alguns filmes – não tantos quanto gostaria! Acumulei assunto para alimentar o blog e saciei minha fome de bom cinema. Aliás, o primeiro filme que degustei nesse período de convalescença foi um verdadeiro banquete: Sabor da Vida, realizado em 2015 pela diretora japonesa Naomi Kawase.
        Eis aqui um filme delicado e ao mesmo tempo denso, realizado com sensibilidade artística e notável expressão lírica. Trata-se de cinema maduro, que nos traz uma história emocionante, mas sem perseguir as cenas lacrimejantes – embora em certos momentos o encontro com nossas próprias emoções torne o choro inevitável. É construído com uma simplicidade narrativa comovente, como se nos oferecesse uma sucessão de haicais. É realizado com virtuosismo no trato das imagens e dos sons – o universo sonoro, aliás, é um espetáculo à parte! Enfim, é um filme sobre o qual só consigo derramar elogios.
        Sabor da Vida nos conta a história de Sentaro (Masatoshi Nagase) o gerente de uma loja dorayaki chamada "Dora Haru", uma espécie de pastelaria cravada numa região residencial de Tóquio. Seguindo por inércia em uma rotina enfadonha, o gerente prepara diariamente seus dorayakis recheados com uma pasta doce de feijão industrializada. Seus clientes são moradores vizinhos e algumas estudantes do ensino médio, como Wakana (Kyara Uchida), que aos 14 anos remói as dúvidas e inseguranças da adolescência. A vida parece seguir em ciclos governados pelo florescer das cerejeiras, que definem a paisagem urbana em repetições previsíveis. Até que entra em cena a senhora Tokue (Kirin Kiki), uma idosa que se propõe a trabalhar como assistente de Sentaro, preparando sua pasta de feijão artesanal, muito mais saborosa. Há então um sopro de renovação nas vidas de Sentaro e Wakana. As sabedorias e qualidades que a senhora Tokue traz consigo mudam o dia-a-dia de todos e conquistam a admiração dos clientes. Porém, o sucesso não vem sozinho. Traz junto a incômoda sensação de que há algo fora da ordem. Quando vem à tona a informação de que a senhora Tokue é moradora de um sanatório destinado a ex-portadores de hanseníase – a terrível lepra – o preconceito da comunidade impõe barreiras intransponíveis. O estigma torna-se gritante!
        Essa história foi contada inicialmente pelo jornalista e escritor Durian Sukegawa, em seu romance intitulado An. O livro não é exatamente sobre a lepra, mas sim sobre a discriminação e o preconceito que a doença enseja. No Japão havia uma lei de prevenção à hanseníase, que determinava o isolamento dos pacientes, mesmo depois de curados, que só foi abolida em 1996. O tema, portanto, permanecia bastante sensível quando Naomi Kawase decidiu adaptá-lo para as telas. Para escrever o roteiro ela empreendeu uma minuciosa pesquisa, visitando instituições dedicadas ao tratamento da doença.
        A diretora tem alma de documentarista e já assinou diversos filmes experimentais e longas como Floresta dos Lamentos e O Segredo das Águas. Mas em Sabor da Vida ela abandona a voz em primeira pessoa e coloca sua delicadeza e visão poética a serviço de um cinema centrado em personagens complexos, trabalhando em parceria com atores experientes e consagrados. O estilo da diretora impõe ao filme um andamento solene e respeitoso, mas ao mesmo tempo ancorado num realismo desconcertante. A veterana atriz Kirin Kiki e o aclamado ator Masatoshi Nagase tiveram que, literalmente, colocar a mão na massa! Uma loja foi especialmente construída pelos produtores, projetada para se integrar à comunidade. Além de preparar os tais dorayakis recheados com pasta de feijão, os atores foram para a frente de caixa e venderam os produtos para os clientes locais, que sequer se deram conta de que estavam sendo filmados.
        A busca da diretora não foi por realismo, mas sim por naturalidade. Há uma franqueza que emana da falta de ensaios e das improvisações, mas que também é resultado do apurado tratamento dado ao som. Não me refiro apenas à música incidental, mas ao som ambiente: os feijões cozinhando, as árvores balançando ao vento, os carros, a movimentação das pessoas... Enquanto nossos olhos se esbaldam com a beleza simbólica das cerejeiras em flor, nossos ouvidos nos transportam para a realidade de uma cidade imensa, também repleta de cheiros e de sabores. Naomi Kawase soube exceder o universo literário e criar uma excelente adaptação cinematográfica.
        Sabor da Vida é um filme tão vasto que só podia mesmo ter vários títulos. Além desse que o define aqui no Brasil, há o Uma Pastelaria em Tóquio, seu nome de batismo em Portugal e Sweet Bean Paste para os anglófonos. Os franceses conhecem o filme como “An”, palavra que significa “ano" – o ciclo das floradas das cerejeiras! E para os japoneses, “An” representa respectivamente a primeira e a última letra do hiragana, o principal alfabeto que utilizam por lá. Marca a noção de começo e fim, a certeza de que a vida segue em ciclos.

Resenha crítica do filme Sabor da Vida

Título original: An (あん)
Título em Portugal: Uma Pastelaria em Tóquio
Ano de produção: 2015
Direção: Naomi Kawase
Roteiro: Naomi Kawase
Elenco: Kirin Kiki, Masatoshi Nagase, Kyara Uchida, Etsuko Ichihara, Miyoko Asada e Miki Mizuno

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