A Tabacaria: uma história fictícia, repleta de verdades

Cena do filme A Tabacaria
A Tabacaria: direção de Nikolaus Leytner

SOBROU CENÁRIO, FALTOU POESIA

O romance Der Trafikant, escrito pelo austríaco Robert Seethaler em 2012, tornou-se um best seller. Vendeu mais de 500 mil exemplares na sua edição original em alemão. Conta uma história envolvente, sobre o amadurecimento forçado de um rapaz inocente, diante do horror que toma conta da Áustria, quando os nazistas assaltam o poder. Para desenvolver as múltiplas camadas do seu jovem protagonista, o autor inventou uma alegoria engenhosa e provocativa: construiu uma amizade entre ele e ninguém menos do que Sigmund Freud, talvez uma das mais proeminentes personalidades do seu país. Tal relacionamento é fictício, mas plausível. Suficiente para sustentar uma narrativa envolvente e sensível, que vai revelando os traços de todos os personagens enquanto eles sofrem com os desmandos do autoritarismo.
        O diretor Nikolaus Leytner, também austríaco, assumiu a tarefa de verter a obra para o cinema e entregou essa adaptação intitulada A Tabacaria, realizada em 2018, disponível nos serviços de streaming. Com uma produção cuidadosa e visualmente requintada, a história nos chega muito fiel ao romance, mas carente de... poesia! É claro que, ao lidar com uma obra já consagrada entre um universo de leitores, sendo obrigado a transpor sua literatura para a linguagem cinematográfica, é inevitável que um cineasta acabe desagradando alguns. Percebemos que o diretor dedicou seu máximo empenhou e tratou o texto com respeito, mas conseguiu apenas nos entregar um filme repleto de boas intenções. Antes de continuar a argumentação, vejamos uma rápida sinopse:
        A Tabacaria conta a história de Franz Huchel (Simon Morzé), um rapaz de 17 anos, que em 1938 deixa o conforto de sua aldeia natal no interior da Áustria, às margens do lago Attersee, e vai para Viena, onde se torna aprendiz na tabacaria de Otto Trsnjek (Johannes Krisch), um mutilado de guerra. O rapaz, até então superprotegido pela mãe, agora encontra no dono da tabacaria uma figura paterna, que se mostra empenhado em lhe oferecer lições de vida. Franz também conhece o cliente mais proeminente da tabacaria, o mundialmente famoso professor Freud (Bruno Ganz), que mora na vizinhança. Logo o rapaz está assediando o professor, em busca de orientação. Quer tentar compreender o caos e a desordem que vai tomando conta do seu mundo, na medida em que ele está sendo invadido pela fúria desorientadora do poder... feminino! A jovem Anezka (Emma Drogunova), dançarina tão provocante quanto misteriosa, está mexendo com seu coração. Ou será que está mexendo apenas com a sua libido? As questões do amadurecimento vão sendo tratadas com a luxuosa ajuda do pai da psicanálise, mas são postas à prova quando as ameaças do nazismo ganham contornos violentos e provocam eventos trágicos. Como sempre acontece quando o nome Gestapo está envolvido.
        O que mais nos chama a atenção em A Tabacaria é a recriação cenográfica de uma Viena às vésperas da guerra. Nikolaus Leytner foi fundo nos detalhes, caprichando no design de produção e cuidando para que a atmosfera de tristeza e depressão deixasse claro o estado de espírito dos austríacos recém-anexados. Porém, caiu numa armadilha: sua Viena se parece mais com um imenso... cenário! Uma cidade sem vida e acinzentada, onde atores perambulam tentando expressar emoções que habitam outros lugares – poderiam ser encontradas mais facilmente em locações mais simbólicas, como a própria tabacaria, por exemplo.
        O primeiro tratamento para o roteiro de A Tabacaria foi escrito por Klaus Richter, que morreu antes que o filme começasse a ser produzido. O diretor Nikolaus Leytner ingressou no projeto e fez algumas modificações no roteiro. Inventou as expressões visuais dos sonhos descritos pelo protagonista e enfatizou seu relacionamento com a mãe, por meio da troca de cartões postais entre eles. Talvez o maior acerto do diretor tenha sido o de caracterizar o personagem de Sigmund Freud não como o pai da psicanálise, mais apenas como um experiente e cansado homem de 80 e tantos anos, que tem alguma experiência de vida a ensinar a um jovem inocente. Mas nessa tarefa, Leytner certamente teve a ajuda do brilhante Bruno Ganz, um ator que inunda a tela com credibilidade.
        O elenco de A Tabacaria é competente e acrescenta muita credibilidade ao filme. Pena que, sob a batuta do diretor, eles não conseguiram ir além da recitação precisa dos diálogos que lhes foram dados para interpretar. Não foi dessa vez que o romance de Robert Seethaler encontrou uma expressão abrangente e poética nas telas do cinema. Merecia uma adaptação mais caprichada, não no sentido visual, mas no sentido poético!

Resenha crítica do filme A Tabacaria

Título Original: Der Trafikant
Ano de produção: 2018
Direção: Nikolaus Leytner
Roteiro: Klaus Richter e Nikolaus Leytner
Elenco: Simon Morze, Bruno Ganz, Emma Drogunova, Johannes Krisch, Karoline Eichhorn, Elfriede Irrall, Regina Fritsch, Fritz Egger, Angelika Strahser, Carl Achleitner, Anton Algrang, Thomas Mraz, Erni Mangold, Gerti Drassl, Michael Fitz, Rainer Wöss, Sabine Herget, Barbara Spitz, Alexander E. Fennon, Martin Oberhauser e Rainer Doppler

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