Resistência: será que Marcel Marceau fez isso tudo?

Cena do filme Resistência
Resistência: direção de Jonathan Jakubowicz

SOBROU AÇÃO E FALTOU PROTAGONISTA

Ah, o impulso de contar histórias! Para os amantes da sétima arte ele é praticamente vegetativo – é como respirar! Mas há os apressados, que não conseguem se conter e saem tagarelando de empolgação, assim que encontram uma trama das boas. O diretor venezuelano Jonathan Jakubowicz – conhecido por seu filme Mãos de Pedra – encontrou uma com potencial de sensibilizar a audiência, mas dessa vez meteu os pés pelas mãos! Seu filme de 2020, intitulado Resistência, embora bem produzido, tropeçou na narrativa. Soa incompleto, raso e só faz atiçar a vontade de conhecer mais a fundo o personagem que homenageia.
        Sua história é protagonizada por ninguém menos do que Marcel Marceau, um artista superlativo, considerado um dos maiores mímicos de todos os tempos, que também atuou como coreógrafo. Criou personagens inesquecíveis e encantou plateias do mundo todo, com performances silenciosas, mas eloquentes, que faziam rir e arrancavam lágrimas com a mesma espontaneidade. O diretor Jonathan Jakubowicz conhecia as qualidades artísticas de tal personagem, mas se entusiasmou quando descobriu uma faceta notável que ele manifestou na adolescência: foi um herói na Segunda Guerra, quando participou da resistência e salvou incontáveis crianças judias de serem exterminadas pelos nazistas que ocuparam a França. Antes de prosseguir, precisamos conhecer a sinopse do filme:
        Em Resistência, as atrocidades começam em 1938, quando os nazistas invadem a casa da menina Elsbeth (Bella Ramsey) e friamente executam seus pais. Ela termina abrigada em um orfanato em Estrasburgo, na França, cidade natal de Marcel Marceau (Jesse Eisenberg). Lá o mímico ainda busca sua identidade artística, enquanto trabalha no açougue Kosher do pai. Por interferência do seu irmão Alain (Félix Moati) Marceau passa a trabalhar como voluntário com as crianças do orfanato, juntamente com Emma (Clémence Poésy) e Mila (Vica Kerekes). Quando a França é invadida, eles se arriscam para proteger os órfãos judeus, mas na medida em que o terror nazista se intensifica, fica claro que precisarão se tornar combatentes. Por intermédio de Georges Loinger (Géza Röhrig), primo de Marceau, o grupo entra para a resistência em Lyon, cidade comandada pelo famigerado Klaus Barbie (Matthias Schweighöfer), um mostro sem escrúpulos, que fará de tudo para aniquilá-los.
        Nessa história real, o que fez brilhar os olhos do diretor foram as inúmeras abordagens que vislumbrou para o seu filme. Como judeu, emocionalmente envolvido com os assuntos relacionados à Segunda Guerra, quis abordar o Holocausto por um lado mais edificante e inspirador, onde cidadãos comuns se erguem corajosos para enfrentar e vencer as bestas-feras nazistas. Também procurou destacar o esforço legítimo e heroico do seu próprio povo, que lutou ativamente sem contar com a ajuda de salvadores ou libertadores externos. E, mais importante, mostrou que o simples ato de sobreviver se constitui numa das mais poderosas armas para derrotar qualquer inimigo. O problema é que, abordando tantos temas, acabou perdendo o foco do seu protagonista.
        Para esclarecer meu ponto, será necessário fazer algumas contas. Marcel Marceau, que nasceu em 1923, tinha apenas 15 anos quando a narrativa de Jakubowicz começa, em 1938. Quando entrou para a resistência, em 1942, tinha 19 anos. Ora, o ator Jesse Eisenberg, que interpreta o mímico, tinha 37 anos durante as filmagens. Por mais que o cinema – e a arte da interpretação – tenham recursos para superar essas diferenças numéricas, o resultado alcançado ficou a desejar. O que vemos claramente é Jesse Eisenberg se esforçando para atender os interesses narrativos do diretor, enquanto mantém os ímpetos artístico e juvenil do protagonista contidos num mundo interno ao qual não temos acesso.
        Jesse Eisenberg é um ator talentoso e até apresenta uma estampa jovial, mas foi convocado pelo diretor principalmente por sua história de vida. Sua mãe atuou como palhaço de circo e sua família passou pelos horrores do Holocausto. Identificado com a causa maior do filme, ele não encontrou brechas no roteiro para encarnar Marcel Marceau com a necessária autenticidade.
        O roteiro de Jonathan Jakubowicz, aliás, não enfatizou a autenticidade. Construiu cenas que mostram um protagonista capaz de fazer sacrifícios heroicos, mas que não se considera um guerreiro. De outro lado, apresentam um antagonista malévolo, mas convicto de que está lutando pelo lado que está com a razão.
        Mas quero citar duas cenas que me incomodaram profundamente. A primeira é a que mostra a fuga da tropa de escoteiros pela floresta coberta de neve, quando, depois de se camuflarem na copa de uma árvore, são obrigados a saltar de um penhasco sob os tiros do próprio Klaus Barbie e seu pelotão de nazistas. É inverossímil e desconcertante! A outra cena problemática é quando o próprio Marcel Marceau, para salvar o irmão, ateia fogo em um nazista durante uma ação à luz do dia. A pergunta que me fiz foi:
        – Uau! Será que o mímico fez isso de verdade?
        Duvidei! Mas então, pensei:
        – Ora, se Marcel Marceau, um artista superlativo, que encantou o mundo com suas performances silenciosas, mas eloquentes, precisou cometer tal ato extremo, então esse foi, certamente, um ato definidor na sua personalidade, como ser humano e como artista. Por que estaria retratado assim, com tamanha displicência, apenas para elevar a temperatura do filme? Por que não está ocupando seu lugar de destaque, como elemento central na trama, em torno do qual deveriam orbitar os demais elementos que dão forma ao caráter do protagonista?
        Em Resistência, os cenários e figurinos são belos, a fotografia é luminosa e a trilha sonora é envolvente. Todos esses elementos foram manipulados para passar a mensagem edificante e inspiradora que o diretor concebeu. Até mesmo a presença de Ed Harris, interpretando o general George S. Patton, serviu para ampliar a grandeza e a abrangência da história. Quem se apequenou foi Marcel Marceau. Infelizmente, faltou alcance dramático!

Resenha crítica do filme Resistência

Ano de produção: 2020
Direção: Jonathan Jakubowicz
Roteiro: Jonathan Jakubowicz
Elenco: Jesse Eisenberg, Kue Lawrence, Clémence Poésy, Félix Moati, Vica Kerekes, Matthias Schweighöfer, Géza Röhrig, Ed Harris, Bella Ramsey, Martha Issová, Karl Markovics, Arndt Schwering-Sohnrey, Alex Fondja, Aurélie Bancilhon, Alicia von Rittberg, Louise Morell, Wolfgang Ceczor, Philip Lenkowsky, Édgar Ramírez, Klára Issová, Dimitri Storoge, Felicity Montagu, Werner Biermeier, Maxim Boubin e Tobias Gareth Elman

Comentários

  1. Marcia Cordeiro10/09/2023, 12:20

    Ah, fala sério! Mobilizar emoções dolorosíssimas guardadas no fundo do baú de lembranças impossíveis de esquecer...

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  2. Se faltou alcance dramático no filme, em sua crítica também faltaram elementos que negassem efetivamente os fatos ditos como reais pelo filme. Claro, é totalmente aceitável que os filmes sejam romanceados e dramatizados, a fim de trazer maior intensidade dramática a uma história. A ficção entremeada com a realidade faz parte da arte cinematográfica. Mas isso não quer dizer que Marcel Marceau não tenha feito o que o filme apresenta.

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    Respostas
    1. Certamente, Eleazar! Meu questionamento não é sobre a veracidade dos fatos, mas sobre a pouca profundidade emocional que o filme apresenta. Um artista como Marcel Marceau teria transbordado emoção nas passagens mais trágicas do filme - e cito especialmente o fato de ele ter incendiado alguém para salvar o irmão! O diretor preferiu seguir em águas rasas.

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