1984: a data continua como um mau presságio

Cena do filme 1984
1984: direção de Michael Radford

AINDA NÃO FOI EM 1984, MAS...

Estava com 23 anos em 1984. Já não era mais um estudante e labutava numa multinacional para fazer minha carreira na publicidade. Então aconteceu uma revolução! Um comercial inovador, dirigido por ninguém menos que Ridley Scott, invadiu nossas televisões e mudou o jeito de pensar a comunicação. O produto anunciado era um novo computador da Apple, batizado de Macintosh – nome de uma variedade de maçã cultivada na Califórnia. O roteiro, criado pelos publicitários Steve Hayden, Brent Thomas e Lee Clow, da agência Chiat\Day, usava como mote o romance 1984, escrito por George Orwell.
        Observe que este famoso comercial de TV, com apenas um minuto de duração, não foi feito para vender um computador, mas para vender uma ideia! Recria a perturbadora cena dos pálidos trabalhadores robotizados, que servem de audiência para uma imensa tela com a imagem ameaçadora do Big Brother. Mas então, acontece algo que não estava no script: surge uma atleta loira para salvar a humanidade da apatia. Ela estilhaça a tela com o poderoso martelo da inovação. O locutor então faz uma provocação, dizendo que 1984 não será como 1984!
        O revolucionário comercial da Apple, exibido pela primeira vez durante o intervalo do Super Bowl, um dos maiores eventos esportivos nos Estados Unidos, inaugurou um novo jeito de fazer publicidade e mudou a mentalidade dos publicitários. Há muito o que comentar a respeito dessa histórica peça, mas aqui na Crônica de Cinema miramos nos filmes. Então, prefiro escrever sobre outro 1984, o longa dirigido por Michael Radford no ano de... 1984!
        O filme de Radford parece ter se nutrido na mesma tigela de oportunismo na qual se fartou o comercial da Apple, mas não foi bem assim. O ano de 1984 era mesmo uma espécie de marco temporal, que o romance de George Orwell estabeleceu como um mau presságio. O escritor e jornalista inglês escreveu sua obra de ficção em 1949, quando as feridas da Segunda Guerra Mundial ainda estavam purulentas, para ser uma espécie de conto de advertência contra as ameaças do totalitarismo. Expunha as perversões do comunismo e do fascismo, tentando retratar as atrocidades cometidas no passado, as que assombravam o seu presente e as que ameaçavam acontecer no futuro.
        Orwell concebeu um mundo distópico, formado por três nações totalitárias, a Oceânia, a Eurásia e a Lestásia. Controladas por regimes fascistas, nos moldes daqueles surgidos na Europa dos anos 1930, elas convivem em permanente estado de guerra. A Oceânia, terra do protagonista Winston Smith, é governada pelo partido Ingsoc – acrônimo de Socialismo Inglês – comandado pelo tal Big Brother, um misterioso ditador que a população só conhece por meio de uma única foto. A sociedade é estratificada entre os poderosos membros do partido interno, os trabalhadores do partido externo, os membros da prole e os abandonados, numa escala descendente em privilégios, mas ascendente em crescimento populacional.
        O estado é senhor absoluto. Reescreve a verdade e apaga as inconveniências. Vomita estatísticas e dita o que é notícia. Os que ousam questionar são condenados por crime de ideia e eliminados pela Polícia do Pensamento. O estado controla até mesmo o idioma, impondo uma novilíngua com vocabulário mais reduzido, onde as palavras têm significados alterados para facilitar o... desentendimento. O partido governa por meio de quatro tentáculos: o Ministério da Verdade, que escreve a história, o Ministério da Paz, que conduz a guerra, o Ministério da Fartura, que rege a economia planificada e o Ministério do Amor, que controla a população.
        O filme de Radford é bastante fiel ao romance e narra a trajetória de Winston (John Hurt), funcionário do Ministério da Verdade, que trabalha reescrevendo os documentos oficiais e alterando os dados históricos, de acordo com os interesses do partido. Os problemas começam quando ele se apaixona por Julia (Suzanna Hamilton), que trabalha como mecânica de impressoras. Os dois começam um caso ilícito, trocam ideias subversivas e... fazem sexo! Nem desconfiam que são vigiados pelo estado. Terminam presos e torturados por O'Brien (Richard Burton), membro do alto escalão do partido interno, acusados de fazer parte da resistência liderada por um tal de Emmanuel Goldstein, inimigo do partido.
        O diretor inglês Michael Radford estava atento para a proximidade da fatídica data e aventou a possibilidade de realizar uma nova adaptação do romance de George Orwell – a primeira, dirigida em 1956 por Michael Anderson, havia sido realizada como uma obra meramente comercial, para nocautear o comunismo soviético. Radford conseguiu adquirir os direitos, que pertenciam a um advogado de Chicago chamado Marvin Rosenblum, e tratou de escrever o roteiro em parceria com Jonathan Gems em apenas três semanas.
        Esta adaptação de 1984 resultou mais fiel ao romance. É mais sombria e consegue explorar melhor a angústia vivida por todos os personagens. Descreve com precisão o estado de vigilância que hoje já estamos experimentando graças à tecnologia digital e, apesar de manter os ares de distopia, mostra o que pode acontecer lá na frente, caso aceitemos condescender com os vícios totalitários.
        1984 é cinema de qualidade. Além da direção competente de Michael Radford, temos uma atuação gigantesca de John Hurt e uma presença marcante de Richard Burton – o astro morreria dois meses depois das filmagens. A fotografia de Roger Deakins é primorosa e a música da dupla Eurythmics impõe uma atmosfera sombria e introspectiva. Mas é impossível assistir ao filme sem deixar de pensar em Brazil - O Filme, dirigido por Terry Gilliam – embora tenham enredos distintos, compartilham a mesma abordagem distópica e várias das locações londrinas.
        Este é um filme contra a tirania do estado. Mostra o que fatalmente acontece quando trocamos liberdade por conveniência. Quando aceitamos ser vigiados, controlados e adestrados. Quando ficamos displicentes com nosso idioma. Quando deixamos que nos desumanizem. O que mais me entristece em 1984 é perceber que muitos dos conceitos que ele sugere estão de fato nos assombrando, como o ministério da verdade, a novilíngua, o crime de ideia... Enquanto isso, outros estão sendo atenuados. Veja, por exemplo, o Big Brother! Já não significa o grande irmão mais velho e tirânico, que a todos vigia com sanha policial. Agora, o termo só remonta a um reles reality show de eliminação, onde o que conta é o hedonismo e a futilidade. Tudo isso é um grande mau presságio!

Resenha crítica do filme 1984

Título original: Nineteen Eighty-Four
Ano de produção: 1984
Direção: Michael Radford
Roteiro: Jonathan Gems e Michael Radford
Elenco: John Hurt, Richard Burton, Suzanna Hamilton, Cyril Cusack, Gregor Fisher, James Walker, Andrew Wilde, David Trevena, David Cann, Anthony Benson, Peter Frye, Roger Lloyd-Pack, Rupert Baderman, Corinna Seddon e Martha Parsey

Comentários

  1. Nunca li o livro nem assisti o filme, mas sei que são ótimos e sua crônica muito bem escrita me faz ficar mais querendo ler o livro e assisti o filme.

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    1. Obrigado! A obra de George Orwell é essencial. Precisa ser visitada!

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  2. Vi ambos os filmes, 1984 e Brazil. Realmente é impossível mencionar um sem que se lembre do outro. Ambos fantásticos preditores dos tempos atuais.

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    1. Os dois filmes foram rodados praticamente na mesma época. O filme de Terry Gillian merece uma crônica, que estarei publicando em breve!

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