O Leitor: verdade ou ficção?

Cena do filme O Leitor
O Leitor: direção de Stephen Daldry

COMO VIVER À SOMBRA DOS CRIMES DO NAZISMO?

É empolgante esbarrar em grandes títulos escondidos nos serviços de streaming. Outro dia, Ludy e eu já estávamos desanimados – quase prontos para nos render a um filminho qualquer – quando nos surge a capa de O Leitor, filme dirigido em 2008 por Stephen Daldry. As estampas de Kate Winslet e Ralph Fiennes apareceram como um alento. Pronto! Não precisávamos mais nos conformar com a mediocridade! Foi dar o play e fruir cinema de verdade.
        De imediato me ocorrem três pontos que precisam ser destacados sobre O Leitor: primeiro, Kate Winslet venceu o Óscar por sua atuação nesse filme, com justiça. Que interpretação! Segundo, o filme remete ao Holocausto, mexendo com a culpa que remoeu a consciência dos alemães nas décadas que se seguiram à Segunda Guerra. E terceiro, as pitadas de erotismo, espalhadas com pertinência e sensibilidade por todo o primeiro ato do filme, elevaram ainda mais a qualidade do drama. O que acompanhamos é uma história densa, vivida por personagens complexos e multifacetados, que revira temas espinhosos. E como é bem contada!
        Esta é a adaptação para o cinema do aclamado romance de ficção Der Vorleser, escrito em 1995 com tintas autobiográficas pelo alemão Bernhard Schlink. A obra, estudada nas escolas alemãs e amplamente conhecida, fala diretamente à alma de uma geração atormentada pelo passado nazista, que se faz presente como um estigma, mesmo para aqueles que não o viveram. Fala de amor, mas cutuca feridas abertas desde a guerra, numa fascinante mistura de inocência e inconsequência. Antes de seguir em frente, vejamos a sinopse:
        O Leitor é sobre Michael Berg (Ralph Fiennes), um advogado que ainda traz vívida a lembrança do romance que viveu quando tinha 15 anos (interpretado pelo ator David Kross) com uma mulher bem mais velha que ele, a misteriosa Hanna Schmitz (Kate Winslet). Os dois vivem um relacionamento intenso. Para ele, marcado pela iniciação sexual e pela descoberta do primeiro amor. Para ela, uma forma de aplacar a solidão e ter a companhia de alguém que leia os romances que não consegue ler. Quando o caso termina, Michael sofre, mas segue com a vida. Entra para a faculdade de direito e reencontra Hanna anos depois. Ela agora está sentada no banco dos réus, sendo julgada pelos atrozes crimes de guerra que confessa ter cometido.
        O diretor Stephen Daldry, consagrado por seus filmes anteriores, As Horas e Billy Elliot, leu o romance e se empenhou em realizar a adaptação para o cinema. Convocou seu colaborador de longa data, o escritor e dramaturgo inglês David Hare, para trabalhar no roteiro. Os dois estabeleceram uma conexão direta com o autor, Bernhard Schlink, com quem discutiram em detalhes cada um dos rascunhos que foram escritos. Ao final, a adaptação resultou bastante fiel ao livro.
        Algumas diferenças, no entanto, ficaram evidentes. No livro, o foco está mais em Hanna, enquanto que o filme dá mais presença a Michael. Algumas cenas, como as que mostram Michael participando dos seminários na faculdade, foram inventadas pelo roteirista, para acomodar a necessidade de exposição de questões políticas e culturais que eventualmente escapem ao grande público. Tudo isso contribuiu para uma narrativa mais orgânica e fluída, exigência da linguagem audiovisual.
        De imediato, o que arrebata o espectador é a fotografia deslumbrante. O Leitor é uma obra refinada, que mistura locações, cenários, figurinos, objetos de cena, trilha sonora e design de som para envolver o espectador numa experiência sensorial completa. Acompanhamos Michael em seu arco dramático, enquanto nutrimos alguma empatia por Hanna. Mas, então, sentimos a decepção do rapaz quando a ambiguidade da personagem vem à tona e somos igualmente soterrados por uma avalanche de questões morais e éticas.
        É preciso reconhecer que as cenas de cunho sexual foram muito bem realizadas. No livro, enquanto o envolvimento entre Michael e Hanna recebe um tratamento literário – mais como uma metáfora do caso de amor entre a Alemanha e o Nazismo – o erotismo fica a cargo do leitor. No cinema, no entanto, a natureza gráfica da linguagem exige um tratamento mais criterioso, apropriado para as plateias de diferentes países.
        Enquanto Michael é interpretado por dois (ótimos) atores, na juventude e na maturidade, Hanna ficou o tempo todo na pele de Kate Winslet. A atriz britânica entrega uma atuação poderosa, interpretando uma alemã áspera, de fibra e introspectiva. Ela consegue evocar uma diversidade de sentimentos, que provocam repulsa e cobram simpatia. Que assustam e comovem. Que causam pena, mas também admiração. É claro que o ótimo texto da adaptação de David Hare e a pungente história criada por Bernhard Schlink merecem créditos, mas o desempenho da atriz é o que mais nos salta aos olhos.
        O julgamento de Hanna e seus crimes de guerra são fictícios, mas inspirados nos diversos julgamentos sobre os desmandos em Auschwitz, que marcaram a Alemanha dos anos 1960, quando o país começou a expurgar seus fantasmas. O mundo começou a perceber que muitas das atrocidades cometidas nos campos de concentração não foram obras de monstros desumanos, mas de gente comum, que por irrefletida adesão – ou puro instinto de sobrevivência – viraram peça móvel numa abominável máquina de matar. O Leitor é um filme vigoroso, que mostra o impacto do Holocausto nas gerações do pós-guerra e nos dá uma ideia do esforço que precisaram fazer para se livrar do estigma deixado pelos que cometeram crimes contra a humanidade. Vale a pena conferir!

Resenha crítica do filme O Leitor

Título original: The Reader
Ano de produção: 2008
Direção: Stephen Daldry
Roteiro: David Hare
Elenco: Kate Winslet, Ralph Fiennes, David Kross, Jeanette Hain, Susanne Lothar, Alissa Wilms, Florian Bartholomäi, Friederike Becht, Matthias Habich, Frieder Venus, Lena Olin, Alexandra Maria Lara e Bruno Ganz

Comentários

  1. Adorei esse filme e vi 3x

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    1. Também gostei muito. Revisitar esse filme é sempre proveitoso.

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  2. Vc já assistiu Zona de Interesse? Esperando por sua crônica sobre este filme.

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    1. Ah, ainda não assisti! Já está na lista. Obrigado pela dica.

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