Ficção Americana: a armadilha dos estereótipos
Ficção Americana: dirigido por Cord Jefferson
CINEMA ENVOLVENTE, ELEGANTE E INTELIGENTE
Com o olhar difuso, miro algum ponto focal dentro da minha mente e bebo outro gole de café. Tal gesto mecânico denuncia: opero no modo divagação, enquanto tento preencher a tela em branco do computador. Desta vez, meu esforço é para compreender os fatores críticos que me trouxeram até aqui e determinaram a vida que levo. Que estabeleceram quem sou, o que tenho, o que posso, o que me resta... Gostava de pensar que a minha inteligência está no ponto zero. A partir dela, tudo o mais se deriva: meus desejos, meus humores, meus amores, minhas capacidades, meus talentos... Em razão disso, cultivar conhecimento e exercitar os neurônios sempre foram essenciais no meu modo de vida.Com a idade, percebi que nem todos se medem pela mesma régua. Alguns elegem a fé como ponto zero, outros, escolhem a sensualidade. Há quem considere mais importante ter e exercer o poder, quem priorize o vigor físico, quem preze pela beleza, quem se defina pelas habilidades em se relacionar... A maioria citará uma mistura de prioridades, sem se importar em marcar um ponto zero. Ainda assim, seguirão uma escala de valores. Empurrarão para o fim da lista os atributos mais desimportantes.
Dadas as circunstâncias em que cheguei a esse mundo – e tudo o que fiz por merecer depois disso – a última de todas as minhas características, que não considero relevante e da qual nada de valoroso vá se derivar, certamente é a cor da minha pele. Jamais liguei para esse detalhe! O protagonista de Ficção Americana, filme dirigido em 2023 por Cord Jefferson, já não pode dizer o mesmo. O sujeito é inteligente, sofisticado e dono de um repertório rico e vasto. Escritor talentoso, ocupa um lugar importante no meio acadêmico e está na sua melhor forma intelectual e emocional. Mas as pessoas insistem em enxergar primeiro a cor da sua pele!
Já havia tropeçado com esse título no serviço de streaming, mas não me entusiasmei. Havia outros filmes na fila. Porém, ao receber a mensagem de um seguidor da Crônica de Cinema com elogios a esse filme premiado na cerimônia do Óscar, decidi conferir. Agora, aqui estou, no modo divagação. Tento avaliar o impacto dessa obra, que oferece cinema de qualidade, denso e envolvente.
Ficção Americana conta a história de Thelonious Ellison (Jeffrey Wright), escritor e professor de literatura, tratado pelos familiares e amigos como Monk – uma alusão ao lendário músico de jazz. Seu último manuscrito não encontra aceitação entre os editores, porque não reflete apropriadamente a “cultura negra”. Obrigado a tirar licença na universidade, vai participar de seminários literários, onde se depara com obras mais engajadas nas questões raciais, como a da escritora Sintara Golden (Issa Rae), que se dedica a sabujar os estereótipos. Monk também aproveita para retomar o convívio com a família e lavar os quilos de roupa suja que ficaram pendentes por anos. Num ímpeto raivoso, decide escrever um livro raso, agarrado aos estereótipos negros e mais palatável ao mercado. Apenas por escárnio, pede ao seu agente, Arthur (John Ortiz), que submeta às editoras o seu manuscrito, escrito sob o pseudônimo de Stagg R. Leigh. Não é que uma delas compra a ideia e decide investir alto no seu lançamento? Agora, com as mãos em uma... grana preta, Monk verá seu livro, que considera produto de subliteratura, ganhar projeção. Vê-se, a partir daí, obrigando a criar um emaranhado de mentiras.
O filme é uma adaptação do romance Erasure, escrito em 2001 por Percival Everett, que discute em tom de sátira a representatividade da cultura negra na indústria editorial americana. Pelo olhar do seu alter ego, Monk, um intelectual desiludido e irônico, o autor cutuca os que se agarram aos ditames sobre o que é ser um artista negro e vomitam regras sobre o que a arte negra, afinal, deveria ser. O diretor Cord Jefferson, ele também um escritor com uma carreira premiada por diversas séries de sucesso para a televisão, se encantou com o romance e decidiu adaptá-lo para o cinema. Escreveu um roteiro afiado e venceu o Óscar de melhor roteiro adaptado.
O que primeiro salta aos olhos em Ficção Americana é a habilidade do diretor em fugir dos clichês. À primeira vista, os personagens que entram em cena parecem estereotipados, mas ganham profundidade e revelam-se em camadas surpreendentes. Com sua formação no universo da TV, Cord Jefferson desenvolveu essa habilidade em trabalhar os personagens ao longo da narrativa. É claro que num longa-metragem, o tempo é mais escasso que numa série, ainda assim ele conseguiu caracterizações bastante reais. Ressaltou as subtramas e deu voz a personagem que tinham pouco espaço no romance original.
Em Ficção Americana, Cord Jefferson traça um retrato sensível e envolvente de uma família negra, complexa e sofisticada. Mostra que há grande diversidade dentro da comunidade negra. Seu filme é elegante, profundo e divertido. É também um feito e tanto, já que se trata do primeiro longa do diretor, que escreveu o roteiro, o vendeu para um grande estúdio, arregimentou um elenco de peso – Jeffrey Wright está excelente! – e conquistou diversos prêmios, entre eles um Óscar!
O fato é que o filme encontrou o tom certo, já que não se preocupa em pregar sermões ou erguer bandeiras. O próprio protagonista, ao final, é levado a refletir melhor sobre as verdades que defende – logo ele, que se recusa a ser definido pela cor da pele. Também terá que aceitar outras verdades incômodas, trazidas à tona por personagens que, no início, eram apenas clichês, mas que ganham corpo e alma ao longo desse elegante exercício de cinema. Vale a pena conferir!
Resenha crítica do filme Ficção Americana
Título original: American FictionAno de produção: 2023
Direção: Cord Jefferson
Roteiro: Cord Jefferson
Elenco: Jeffrey Wright, Tracee Ellis Ross, Issa Era, Sterling K. Brown, John Ortiz, Erika Alexander, Leslie Uggams, Adam Brody, Keith David, Okieriete Onaodowan, Myra Lucretia Taylor, Raymond Anthony Thomas, Miriam Shor, Michael Cyril Creighton, Patrick Fischler, Neal Lerner, J. C. MacKenzie, Jenn Harris, Bates Wilder, Ryan Richard Doyle e Skyler Wright
Obrigado pela crítica - que me fez assistir. A trilha sonora é primorosa... acústica e minimalista, com o piano resolvendo muitas questões - assistir de fone maximizou a experiência. o Jeffrey Wright está excelente... o drama pessoal e o personagem sofridamente contido... e o roteiro é bom demais. Como anda difícil ter um roteiro tão conciso e ao mesmo tempo tão ousado... denso, e ao mesmo tempo super fluído... pra quem escreve então... obrigatório.
ResponderExcluirSim, Elmo, o filme é um convite para seguir assistindo, sem pensar muito na quantidade de cinema envolvido. Só depois é que nos pegamos pensando no que foi aquilo!!!! Quanto ao piano, uma delícia apropriada para acompanhar um personagem chamado Thelonious e que ainda por cima carrega do apelido de Monk!!!
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