Direto ao Conto - 6
RESTOLHOS
O apocalipse, quando veio, não foi na forma de hecatombe nuclear. Foi um mero apagão! Algum tipo de anomalia solar mexeu com as forças magnéticas do planeta e fritou nossas redes de geração e distribuição de energia. A eletricidade simplesmente deixou de existir. Ao menos aquela que jorrava com fartura das tomadas embutidas nas paredes de casa, que usávamos para carregar nossos celulares. Junto com a eletricidade, desapareceram os bytes, os megabytes e o dinheiro! Depois, num acelerado efeito dominó, desapareceram a comida, os combustíveis fósseis, os meios de transporte, a informação, a salubridade, a lei, a ordem... Um mês de escuridão foi suficiente para gerar o caos e aniquilar 20% dos humanos. Em três meses, restávamos 50%. Em seis meses, não chegávamos a 15% de farrapos humanos.Na manhã do apagão global estava com 32 anos e morava sozinho, num apartamento alugado no centro da cidade. Trabalhava para uma agência de propaganda como diretor de arte. Tudo o que sabia e fazia era por meio dos computadores e do meu celular. Exceto as roupas, a mobília e os objetos decorativos, minhas posses tinham materialidade apenas digital. Quando começaram os saques aos supermercados, atinei que deveria sair à procura de tomadas que ainda estivessem férteis. Meus amigos, colegas e conhecidos partiram em direções diferentes, farejando a localização dos parentes. Como minha mãe e meu pai moravam a 3.600 quilômetros, decidi descer em direção à praia. No trajeto, testemunhei a civilização se desmanchando.
Feito peixes que não se dão conta da água que os cercam, nadávamos na ignorância. Esquecemos que a eletricidade, essa abstração, era o que animava nossas telas, nossos fones de ouvido, geladeiras, elevadores, bombas de gasolina, trens, satélites... Quando a energia do sistema desceu pelo ralo, sufocamos na incompetência. Tínhamos o conhecimento do mundo na ponta dos dedos e, por isso, passamos a acreditar que o saber é mais importante do que o fazer, que o consumir vale mais do que o possuir. Como legado, os homens do nosso tempo não pretendiam deixar grandes feitos, nem construções duradouras. Deixariam só um tantinho mais de conhecimento, que ficaria sempre ali, disponível na ponta dos dedos. Agora, nem isso.
Passados dois anos e meio, ainda não entendo como consegui sobreviver. Vagar sozinho, sem depender de ninguém e sem arrastar dependentes, ajudou. Virei ladrão de comida. Passei por cima de milhares e milhares de cadáveres. Encontrei algumas tomadas, mas mesmo carregado, meu celular era inútil. Apenas me permitiu rever um mundo que agora só existia nas fotos e vídeos. Quando foi conveniente, juntei meu desespero ao de outros. Quando foi vantajoso, segui desgarrado. Quando percebi que me tornara um dos tais farrapos humanos, rendi-me ao óbvio: aderi ao tribalismo.
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“Tribo do Desespero”. Se tivesse que batizar minha tribo, não encontraria nome mais apropriado. Tribalistas autênticos nascem em suas tabas, agasalhados em ritos e alimentados com tradições. Nós, porém, não passamos de um bando de imigrantes ilegais, ordenados por uma divisão de trabalho improvisada, agindo por tentativa e erro sob a liderança de um ensandecido com voz de comando. Vivemos o agora. Estamos instalados em um galpão que já foi sede de uma transportadora. Nos revezamos em turnos, guardando as parcas provisões que nos restam. Bebemos água da chuva, cozinhamos o que pescamos e, ao redor da fogueira, compartilhamos histórias sovadas de melancolia. Temos medo. Das doenças, da fome, dos ladrões, dos animais selvagens e, sobretudo, das tribos rivais. Há inúmeras delas, abrigadas em aldeias organizadas às pressas. Algumas parecem prosperar, mas são fortalezas impenetráveis, vigiadas por xenófobos insones. Outras não passam de hospícios em franca implosão. Muitas são expansionistas, exímias em conquistas e pilhagens, engolidoras de tribos desesperadas.
O que mais me surpreendeu foi a velocidade com que o estado caiu em putrefação. Sem comunicação e sem registros, o controle centralizado faliu. Em questão de semanas não havia mais governo, prefeituras, políticos, funcionários públicos... Os restolhos da burocracia foram rastelados para as valetas da luta pela sobrevivência. O exército se decompôs em pelotões, cada um agarrado às suas armas e agindo em causas próprias. A polícia... Bem... Restaram apenas ex-policiais.
O tribalismo tornou-se óbvio, mas aderimos a ele com grande tristeza. Quem experimentou os requintes da civilização não se conforma com os rudimentos da barbárie. Não me refiro apenas aos antibióticos e anestésicos, mas principalmente aos direitos individuais e à propriedade privada. O poder foi parar nas mãos dos detentores das armas de fogo. Nepotistas, coletivistas, controladores, achacadores, vendedores de proteção... Eles nos comprimem na selvageria, enquanto fingimos esquecimento, ainda que as lembranças do certo e do errado latejem em nossas consciências escolarizadas. Coagidos, sobrevivemos graças às concessões que fazemos. Desesperançados, tornamo-nos escravos do instinto de sobrevivência.
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Hoje à noite decidi não fazer concessões. Não serei plateia para o deprimente show de patetices ao redor da fogueira: Toninho arranhando seu violão sertanejo para acompanhar algumas poucas vozes precárias, João Alves contando o enredo de algum filme ao qual ninguém assistiu, Ana Luiza dando mais uma aula de história universal, Dona Zélia liderando as orações fervorosas...
Subi no telhado e fui comemorar meu aniversário sozinho, em silêncio. Tirei meu celular do esconderijo e o liguei. No ano passado, quando fiz isso, o deixei com 11% de carga na bateria. Com sorte ainda poderia assistir a um ou dois vídeos, depois de deslizar o dedo pela galeria de fotos.
Sinto saudades dos meus pais, dos amigos e dos colegas. Gosto de rever meu semblante jovial e despreocupado, posando nos bares, nas festas, nos passeios... Tinha planos de aproveitar a mocidade, viajar, experimentar comidas exóticas, ir a shows e eventos, colecionar carimbos no meu passaporte... Escolhi desenvolver meus talentos para as artes visuais, ainda que jamais tenha lambuzado as mãos nas tintas e pigmentos – minha intimidade era com as ferramentas virtuais. Profissional produtivo, consciente das minhas contribuições para movimentar a máquina da economia e criar riquezas, ajuntei um portfólio vistoso. Mal tive oportunidade de exibi-lo. Deve estar apodrecendo em algum servidor sem serventia.
Meu pai me deu duas opções: ser engenheiro ou advogado. Como estava viciado em videogames, fui estudar engenharia de sistemas. Reprovei tantas vezes que fui jubilado. Vaidoso, usei minha índole de poeta sonhador para conseguir emprego numa agência especializada em comunicação nas redes sociais. Colecionei tantos likes e consegui tantos engajamentos que me promoveram. Ah, como era hábil em pesquisar, garimpar informações na internet, analisar resultados, criar novas abordagens e conceitos... Sabia um pouco sobre tudo e o conteúdo que eventualmente desconhecia, estava disponível ali, na ponta dos meus dedos. Era divertido ser arrogante!
Se tivesse escolhido a engenharia elétrica, hoje seria protagonista. Estaria concentrado em encontrar soluções para reverter o fim dos tempos. Aliás, qualquer profissão edificante me pouparia do vexame de implorar por redenção. Bastaria seguir altivo, arregaçando as mangas para me juntar aos heróis empenhados em colar os cacos da civilização. Se tivesse vocação para encanador, pedreiro ou carpinteiro, seria hábil em lidar com ferramentas de verdade. Cozinheiro, mecânico, agricultor... Não teria me tornado este inútil, despreparado, desnecessário, parvo...
Nem tudo é escassez nesses tempos pós-apocalípticos. Há uma infinidade de mimos industrializados, desprezados pelos saqueadores famintos, que ficaram esquecidos nas prateleiras dos mercados. Lâminas de barbear, desodorantes, toalhas de papel, potes de plástico, panelas, escovas de cabelo, baldes, esfregões, garrafas térmicas... Desci do telhado e fui apelar para Lauro, o assistente de enfermagem a quem demos o apelido de Doutor e confiamos as chaves do almoxarifado. Ele sempre consegue um bom tranquilizante ou um antidepressivo.
Se houvéssemos envenenado a Terra com resíduos radioativos, ela estaria acinzentada, estéril, desolada... Mas não! Está se desintoxicando! O sol radiante e aconchegante anima nossas manhãs, iluminando o verde nas encostas, azulando o mar e alvoroçando as aves em revoada. Nos faz acreditar que quase tudo está normal. Sou um náufrago contido nesse continente, mas um que perdeu a ousadia de insistir na fuga. Um resignado em vegetar, cumpridor das leis do menor esforço, esperando que um milagre religue os interruptores do mundo. Ainda consigo ser muito preguiçoso quando acordo, desapressado em pular da cama. São poucas as movimentações que me põem em sobressalto e uma delas é quando Antônio e seus homens retornam das rotineiras incursões pelas estradas. Dessa vez, eles pareciam especialmente excitados.
Toda a tribo se acumulou ao redor dos batedores, chiando de curiosidade. Antônio não escondeu sua descoberta: ergueu um celular com a bateria ainda carregada, encontrado com um forasteiro moribundo. Igual a todos os outros, o aparelho era incapaz de se conectar com qualquer rede, mas trazia no bojo um punhado de imagens recentes e um vídeo estarrecedor: o próprio moribundo gravara o depoimento de um bem-falante posando de especialista, que dava explicações plausíveis sobre como alguns visionários estavam contornando a falta de combustíveis fósseis para gerar eletricidade e reestabelecer a normalidade do mundo. A aldeia que se revelava ao fundo, servindo de cenário, não era habitada por uma centena de farrapos humanos, mas por milhares de homens, mulheres e crianças! “Cidade dos Esperançosos”! Se tivesse que batizar aquela metrópole, não encontraria nome mais apropriado. O carrancudo do Paulo Roberto, no entanto, foi taxativo: tratava-se do Rio de Janeiro – ele reconheceu algum detalhe geográfico que nos escapou a todos.
A tribo se dividiu em duas. De um lado, os apressados em organizar a partida. Do outro, os cautelosos, certos de que seria impossível vencer milhares de quilômetros sem topar com bandidos, gangues de psicopatas, animais famintos e outros perigos inimagináveis. O debate se estendeu por todo o dia e foi vencido por aqueles que se recusaram a trocar o certo pelo duvidoso. Apenas quatro sujeitos destemidos – ou desesperados – decidiram rumar para o norte. Liderados pelo obcecado Paulo Roberto, partiriam na manhã seguinte, levando um punhado de provisões. Quanto a mim, não tive dúvidas. Preferi ficar com as minhas certezas de que não sobreviveria a outra incursão a pé pelas estradas desertas e assustadoras.
Na hora da despedida, sobraram abraços, apertos de mão, desejos de boa sorte e orações fervorosas. Paulo Roberto recebeu permissão para levar uma das pistolas 9mm, além de outro pente de balas. Os outros três tiveram que se contentar com as armas brancas. Embrutecidos de tantas agruras, sustentaram a postura aguerrida enquanto iniciavam a marcha rumo ao incerto. Não os enxerguei como soldados intrépidos, nem como heróis exemplares. Não passavam de pobres coitados, cansados de desesperança. Um, era zelador, outro, operador de telemarketing, outro, motoboy. O próprio Paulo Roberto não possuía habilidades de sobrevivência. Na outra encarnação havia sido advogado tributarista.
Deus do céu! Advogado tributarista! Quem dentre todos poderia ser mais dispensável, menos proveitoso, infrutífero? Um canivete suíço nas mãos de quem está se afogando em alto mar, um manual de etiqueta nas mãos de um condenado no corredor da morte, um par de luvas de boxe nas mãos de um jogador de xadrez... Tais objetos continuariam com suas utilidades inerentes, mas um especialista em calcular impostos a pagar e a restituir... Deus do céu!
Compreendi a obsessão de Paulo Roberto. A civilização que o maldito estava interessado em restaurar era aquela labiríntica, cheia de corredores, desvios, atalhos, subterfúgios. Era aquela asfixiada pelo abraço do estado agigantado, imobilizada pela burocracia fútil e relativizada de acordo com a distribuição de privilégios. De súbito, percebi a estupenda oportunidade que os ventos solares sopraram por todo o nosso planeta, quando nos retiraram o domínio sobre a eletricidade. A carcaça do leviatã, morto de causas naturais, ainda estava fétida, espalhada aos pedaços por toda parte. O monstro, porém, poderia ser ressuscitado pelos malditos Paulos Robertos, restolhos imbuídos de... pragmatismo!
Por ter conhecido a civilização e a barbárie, experimentado o melhor e o pior de ambos, encontrei meu norte magnético. Minha bússola moral apontou a direção. Peguei minhas coisas – a mochila com roupas, itens de higiene, um cobertor e o celular com 5% de carga na bateria – e juntei-me aos desbravadores. Para eles, minha presença não fez diferença. Minha índole de poeta sonhador não lhes teria serventia.
Mal sabiam eles que levava comigo uma alma libertária revigorada, disposta a recomeçar do zero, mas do jeito certo. Fodam-se os advogados tributaristas!
Sinto saudades dos meus pais, dos amigos e dos colegas. Gosto de rever meu semblante jovial e despreocupado, posando nos bares, nas festas, nos passeios... Tinha planos de aproveitar a mocidade, viajar, experimentar comidas exóticas, ir a shows e eventos, colecionar carimbos no meu passaporte... Escolhi desenvolver meus talentos para as artes visuais, ainda que jamais tenha lambuzado as mãos nas tintas e pigmentos – minha intimidade era com as ferramentas virtuais. Profissional produtivo, consciente das minhas contribuições para movimentar a máquina da economia e criar riquezas, ajuntei um portfólio vistoso. Mal tive oportunidade de exibi-lo. Deve estar apodrecendo em algum servidor sem serventia.
Meu pai me deu duas opções: ser engenheiro ou advogado. Como estava viciado em videogames, fui estudar engenharia de sistemas. Reprovei tantas vezes que fui jubilado. Vaidoso, usei minha índole de poeta sonhador para conseguir emprego numa agência especializada em comunicação nas redes sociais. Colecionei tantos likes e consegui tantos engajamentos que me promoveram. Ah, como era hábil em pesquisar, garimpar informações na internet, analisar resultados, criar novas abordagens e conceitos... Sabia um pouco sobre tudo e o conteúdo que eventualmente desconhecia, estava disponível ali, na ponta dos meus dedos. Era divertido ser arrogante!
Se tivesse escolhido a engenharia elétrica, hoje seria protagonista. Estaria concentrado em encontrar soluções para reverter o fim dos tempos. Aliás, qualquer profissão edificante me pouparia do vexame de implorar por redenção. Bastaria seguir altivo, arregaçando as mangas para me juntar aos heróis empenhados em colar os cacos da civilização. Se tivesse vocação para encanador, pedreiro ou carpinteiro, seria hábil em lidar com ferramentas de verdade. Cozinheiro, mecânico, agricultor... Não teria me tornado este inútil, despreparado, desnecessário, parvo...
Nem tudo é escassez nesses tempos pós-apocalípticos. Há uma infinidade de mimos industrializados, desprezados pelos saqueadores famintos, que ficaram esquecidos nas prateleiras dos mercados. Lâminas de barbear, desodorantes, toalhas de papel, potes de plástico, panelas, escovas de cabelo, baldes, esfregões, garrafas térmicas... Desci do telhado e fui apelar para Lauro, o assistente de enfermagem a quem demos o apelido de Doutor e confiamos as chaves do almoxarifado. Ele sempre consegue um bom tranquilizante ou um antidepressivo.
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Se houvéssemos envenenado a Terra com resíduos radioativos, ela estaria acinzentada, estéril, desolada... Mas não! Está se desintoxicando! O sol radiante e aconchegante anima nossas manhãs, iluminando o verde nas encostas, azulando o mar e alvoroçando as aves em revoada. Nos faz acreditar que quase tudo está normal. Sou um náufrago contido nesse continente, mas um que perdeu a ousadia de insistir na fuga. Um resignado em vegetar, cumpridor das leis do menor esforço, esperando que um milagre religue os interruptores do mundo. Ainda consigo ser muito preguiçoso quando acordo, desapressado em pular da cama. São poucas as movimentações que me põem em sobressalto e uma delas é quando Antônio e seus homens retornam das rotineiras incursões pelas estradas. Dessa vez, eles pareciam especialmente excitados.
Toda a tribo se acumulou ao redor dos batedores, chiando de curiosidade. Antônio não escondeu sua descoberta: ergueu um celular com a bateria ainda carregada, encontrado com um forasteiro moribundo. Igual a todos os outros, o aparelho era incapaz de se conectar com qualquer rede, mas trazia no bojo um punhado de imagens recentes e um vídeo estarrecedor: o próprio moribundo gravara o depoimento de um bem-falante posando de especialista, que dava explicações plausíveis sobre como alguns visionários estavam contornando a falta de combustíveis fósseis para gerar eletricidade e reestabelecer a normalidade do mundo. A aldeia que se revelava ao fundo, servindo de cenário, não era habitada por uma centena de farrapos humanos, mas por milhares de homens, mulheres e crianças! “Cidade dos Esperançosos”! Se tivesse que batizar aquela metrópole, não encontraria nome mais apropriado. O carrancudo do Paulo Roberto, no entanto, foi taxativo: tratava-se do Rio de Janeiro – ele reconheceu algum detalhe geográfico que nos escapou a todos.
A tribo se dividiu em duas. De um lado, os apressados em organizar a partida. Do outro, os cautelosos, certos de que seria impossível vencer milhares de quilômetros sem topar com bandidos, gangues de psicopatas, animais famintos e outros perigos inimagináveis. O debate se estendeu por todo o dia e foi vencido por aqueles que se recusaram a trocar o certo pelo duvidoso. Apenas quatro sujeitos destemidos – ou desesperados – decidiram rumar para o norte. Liderados pelo obcecado Paulo Roberto, partiriam na manhã seguinte, levando um punhado de provisões. Quanto a mim, não tive dúvidas. Preferi ficar com as minhas certezas de que não sobreviveria a outra incursão a pé pelas estradas desertas e assustadoras.
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Na hora da despedida, sobraram abraços, apertos de mão, desejos de boa sorte e orações fervorosas. Paulo Roberto recebeu permissão para levar uma das pistolas 9mm, além de outro pente de balas. Os outros três tiveram que se contentar com as armas brancas. Embrutecidos de tantas agruras, sustentaram a postura aguerrida enquanto iniciavam a marcha rumo ao incerto. Não os enxerguei como soldados intrépidos, nem como heróis exemplares. Não passavam de pobres coitados, cansados de desesperança. Um, era zelador, outro, operador de telemarketing, outro, motoboy. O próprio Paulo Roberto não possuía habilidades de sobrevivência. Na outra encarnação havia sido advogado tributarista.
Deus do céu! Advogado tributarista! Quem dentre todos poderia ser mais dispensável, menos proveitoso, infrutífero? Um canivete suíço nas mãos de quem está se afogando em alto mar, um manual de etiqueta nas mãos de um condenado no corredor da morte, um par de luvas de boxe nas mãos de um jogador de xadrez... Tais objetos continuariam com suas utilidades inerentes, mas um especialista em calcular impostos a pagar e a restituir... Deus do céu!
Compreendi a obsessão de Paulo Roberto. A civilização que o maldito estava interessado em restaurar era aquela labiríntica, cheia de corredores, desvios, atalhos, subterfúgios. Era aquela asfixiada pelo abraço do estado agigantado, imobilizada pela burocracia fútil e relativizada de acordo com a distribuição de privilégios. De súbito, percebi a estupenda oportunidade que os ventos solares sopraram por todo o nosso planeta, quando nos retiraram o domínio sobre a eletricidade. A carcaça do leviatã, morto de causas naturais, ainda estava fétida, espalhada aos pedaços por toda parte. O monstro, porém, poderia ser ressuscitado pelos malditos Paulos Robertos, restolhos imbuídos de... pragmatismo!
Por ter conhecido a civilização e a barbárie, experimentado o melhor e o pior de ambos, encontrei meu norte magnético. Minha bússola moral apontou a direção. Peguei minhas coisas – a mochila com roupas, itens de higiene, um cobertor e o celular com 5% de carga na bateria – e juntei-me aos desbravadores. Para eles, minha presença não fez diferença. Minha índole de poeta sonhador não lhes teria serventia.
Mal sabiam eles que levava comigo uma alma libertária revigorada, disposta a recomeçar do zero, mas do jeito certo. Fodam-se os advogados tributaristas!
Rapaz! Você é muito bom como contista, estou gostando muito. Agora, além das crônicas, terei mais escritos prazerosos para ler.
ResponderExcluirAh, Corina, muito obrigado! Fico feliz em compartilhar meus textos com quem aprecia. Um abraço.
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