Vestígios do Dia: um clássico dos anos 1990

Cena do filme Vestígios do Dia
Vestígios do Dia: direção de James Ivory

O PRIVILÉGIO DE PODER CONSUMIR ALTA CULTURA

Que serventia tem a cultura, afinal? Ela é para nos lembrar que somos mais do que bichos! Somos humanos, capazes de nos pôr em contemplação diante da existência. E como tal, alcançamos outras realidades além daquela governada pelas leis da física e da química. Para nutrir a alma, precisamos mais do que pão – ou picanha. Precisamos de cultura! Mas não daquela cultura industrial, na qual vivemos imersos desde pequenos. Aliás, o propósito dos produtos culturais, que jorram da mídia e das instituições de ensino, parece ser o de nos conduzir na direção contrária. Tentam nos arrebanhar feito gado apaziguado pelo consenso coletivista.
        Se consumimos essa cultura popular é por razões utilitaristas, e também porque ela nos inicia no exercício da contemplação. Bichos não degustam vinhos, não combinam sabores, não leem poesia, não apreciam pinturas, não se arrepiam com passagens musicais... Mas para nos aproximarmos do divino, só os artefatos culturais padronizados não bastam. Temos que ir além. Precisamos conquistar acesso à alta cultura, cujas portas só conseguimos abrir por meio da erudição.
        Como desfrutar da cultura clássica? Bem, é uma questão de cultivo. Dá trabalho e toma tempo. Exige dedicação, estudos e constantes reflexões. E demanda uma atitude refinada – diferente daquela integrada, exigida pela cultura pop. No cinema, a quase totalidade do que é produzido é mais do mesmo. Raros são os filmes que ousaríamos guardar na prateleira destinada à alta cultura. Entre eles, certamente estão os produzidos pela Merchant Ivory Productions, uma produtora de sucesso criada em 1961 por três personalidades que conquistaram um lugar de destaque na sétima arte: o produtor Ismail Merchant, a roteirista Ruth Prawer Jhabvala e o diretor James Ivory.
        O trio se notabilizou por trazer para as telas excelentes adaptações de obras literárias, que invariavelmente abordam temas complexos e envolvem personagens multifacetados. Seus filmes são sempre inteligentes, elegantes, sofisticados e maduros. Além do visual requintado e do design de áudio apurado, abrem espaço para interpretações marcantes, que arrancam elogios da crítica e aplausos dos cinéfilos mais exigentes. A Merchant Ivory Productions já realizou incontáveis filmes de sucesso, entre eles Uma Janela para o Amor, Retorno a Howard's End e, é claro, o objeto da crônica de hoje, Vestígios do Dia, dirigido em 1993 por James Ivory.
        Baseado no romance Os Vestígios do Dia, publicado em 1989 pelo escritor nipo-britânico Kazuo Ishiguro, ganhador do Nobel de Literatura de 2017, o filme alcançou tamanho sucesso de crítica e bilheteria, que terminou listado entre as maiores realizações do cinema britânico. Numa adaptação fiel e escrita com brilhantismo, temos como pano de fundo um cenário político em ebulição, enquanto acompanhamos a trajetória de personagens complexos, expostos em toda a sua dimensão psicológica. Recebeu oito indicações para o Oscar, mas saiu da festa sem estatuetas, o que, cá entre nós, não significou demérito algum - foi ofuscado pelo ótimo A Lista de Schindler. Antes falar sobre o filme, porém, quero apresentar a sinopse:


        Vestígios do Dia conta a história do dedicado mordomo inglês, James Stevens (Anthony Hopkins), que nutre uma paixão reprimida por uma governanta, Sarah Kenton (Emma Thompson). Na década de 1930, ambos trabalharam para Lord Darlington (James Fox), um aristocrata britânico simpatizante das ideologias fascistas, que atuou para alinhar a diplomacia do seu país aos interesses da Alemanha hitlerista. Sem se dar conta, o devotado Mr. Stevens renuncia à sua paixão por Miss Kenton, enquanto vai se deixando envolver pelas atitudes de Lord Darlington, que apesar de manifestar boas intenções em nome da paz, contribuiu para amplificar o mal nazista. Duas décadas depois, o devotado mordomo é puro arrependimento e solidão. Agora servindo ao congressista americano Jack Lewis (Christopher Reeve), ele vê a oportunidade de corrigir seus erros do passado e, quem sabe, viver a história de amor que desperdiçou.
        O romance de Kazuo Ishiguro, num tom contido, é narrado em primeira pessoa pelo mordomo Stevens, que escreve as revelações em seu diário. O excelente roteiro de Ruth Prawer Jhabvala abandona essa técnica e faz uma tradução precisa para a linguagem cinematográfica. A premiada roteirista desenvolveu alguns personagens secundários e ampliou a presença em cena da governanta, além de dar mais nitidez ao personagem do congressista americano em todas as fases da história. Por meio de diálogos econômicos e bem escritos, ela cria oportunidades para as atuações magistrais de Anthony Hopkins e Emma Thompson, que se esbaldam em nos revelar um subtexto denso e eloquente.


        A habilidade do diretor James Ivory em capturar as emoções do elenco é prodigiosa. Seus planos e movimentos de câmera são elaborados com precisão, enquanto lança mão da trilha sonora em benefício do esforço narrativo, sem tentar conduzir as reações do espectador. Faz um cinema sofisticado, sem abrir concessões. Nós é que precisamos elevar nossos sentidos, se quisermos acompanhar suas criações artísticas e suas referências culturais. Em 2017, aos 89 anos, ele ganhou o Óscar de melhor roteiro adaptado por seu trabalho em Me Chame Pelo Seu Nome.
        Para completar esta crônica, gostaria de mencionar o significado do título Vestígios do Dia. Segundo Kazuo Ishiguro, ele foi extraído do termo em alemão Tagesreste, traduzido como resíduos do dia, usado por Sigmund Freud no seu livro A Interpretação dos Sonhos, para se referir às imagens que nos vêm através do sono. São restos diurnos, errantes e sem sentido para o consciente, que se articulam para expressar novos significados. Ao longo de todo o filme vemos, diversas referências ao título, mas talvez não as enxerguemos todas na primeira audiência. Teremos que revisitar a obra outras vezes para enxergá-las. É o preço que pagamos quando consumimos alta cultura. Dá trabalho e toma tempo. Exige dedicação, estudos e constantes reflexões. Mas é uma questão de cultivo!


Resenha crítica do filme Vestígios do Dia

Título original: The Remains of the Day
Título em Portugal: Os Despojos do Dia
Ano de produção: 1993
Direção: James Ivory
Roteiro: Ruth Prawer Jhabvala
Elenco: Anthony Hopkins, Emma Thompson, James Fox, Christopher Reeve, Peter Vaughan, Hugh Grant, Tim Pigott-Smith, John Haycraft, Michael Lonsdale, Jeffry Wickham, Paula Jacobs, Ben Chaplin, Rupert Vansittart, Patrick Godfrey, Peter Halliday, Peter Cellier, Frank Shelley, Peter Eyre, Wolf Kahler, Lena Headey e John Savident

Comentários

  1. Eu vi este filme varias vezes e cada vez que o revejo me parece melhor que da vez anterior. Uma obra prima filmada digna de ser vista e meditada. Da margem a muitas interpretações subjetivas. A presença de alguns atores famosos é muito marcante. A começar por Hopkins que é mais conhecido por seu papel de psicopata em alguns filmes de grande sucesso. Um ator consagrado e muito versátil . Emma Thompson -que para mim teve neste filme sua melhor atuação. Também gostei da ponta feita por Hugh Grant e do dialogo hilario de seu personagem com o mordomo Stevens quando Lorde Darlington lhe pede a difícil tarefa de explicar ao jovem -prestes a se casar- o que acontece numa noite de núpcias ( lembrando que era uma época em que havia um grande pudor em se falar sobre sexo ) e Stevens é tão prolixo e indireto que o garoto acaba se entender nada e mesmo assim se despede dizendo: "Ótima conversa essa que tivemos. Precisamos ter outras como essas um dia desses! "Mas acho que quem "rouba o show" mesmo é Christopher Reeve que interpreta o milionário americano o qual é o único a ter coragem de dizer publicamente o quanto Lorde Darlington estava sendo ingênuo em promover apoio aos projetos de Hitler pois acreditava que a s intenções dos nazistas eram as piores possíveis (no que estava certo). Reeve é mais lembrado pelo seu inesquecível papel de "Superman". Para mim ele foi sem duvida o melhor a interpretar esse super herói em todos os tempos. Mas muita gente pensa que ele só fez isso. Mas era num ator formidável e talentoso tendo feito grandes papeis dramáticos . Acho que nesse ele esteve em sua melhor forma. Eu acho que esse filme nos ensina que não vale apena passar a vida escondendo nossos sentimentos. Minha falecida mãe também gostava muito desse filme e dizia que o mordomo Stevens era muito parecido comigo. Acho que foi um elogio.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Esta adaptação de Os Vestígios do Dia é cinema de altíssima qualidade, por tudo isso que você comenta e por todos os outros detalhes que vamos percebendo a cada visitação. Sem dúvida, um grande clássico dos anos 1990!

      Excluir

Postar um comentário

Confira também:

Menina de Ouro: a história de Maggie Fitzgerald é real?

Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo: nada importa, nem o cinema!

Siga a Crônica de Cinema