Pequenas Cartas Obscenas: uma comédia de mistério

Cena do filme Pequenas Cartas Obscenas
Pequenas Cartas Obscenas: direção de Thea Sharrock

UMA HISTÓRIA REAL, CONTADA DE MANEIRA INVENTIVA

Uma história pode ser contada de muitas maneiras; tão diversas que, depois de comparar as versões produzidas, talvez duvidemos que possa se tratar da mesma história. Exagero? Não! Os cinéfilos experientes sabem ao que me refiro – já devem ter lembrado de alguns filmes que guardam poucas relações com seus remakes, para além da sinopse básica. As feições de um filme primeiro são determinadas pelas decisões narrativas, que os roteiristas tomam quando começam a costurar a história; depois, temos as decisões do diretor durante as filmagens, que afetam a natureza audiovisual da obra; finalmente, temos aquelas tomadas durante o processo de edição, que provavelmente são as mais decisivas e determinam seu tom, seu ritmo e sua atmosfera. Como um cinéfilo curioso, minha maior diversão é perceber como essas variáveis pipocam na tela.
        Assim que comecei a assistir a Pequenas Cartas Obscenas, dirigido em 2023 por Thea Sharrock, percebi que estava diante de um filme peculiar, produto das interferências criativas causadas por entidades diversas que costumam perambular dentro e fora da tela. Trata-se de uma produção britânica, que se assume comédia enquanto flerta com o mistério, com o suspense e com o drama. É ágil e envolvente, teatral e cinematográfica; e o mais curioso: baseia-se em uma história real!
        Vamos direto para a sinopse: Pequenas Cartas Obscenas se passa em 1920, na cidade litorânea de Littlehampton. Conta a história das vizinhas Edith Swan (Olivia Colman), uma cristã devota que mora com os pais, e Rose Gooding (Jessie Buckley), uma viúva descolada, que cria uma filha vivaz. O imbróglio começa quando Edith recebe as tais cartas obscenas, recheadas de insultos e palavrões, remetidas por algum anônimo desbocado. A carola problemática decide que a autora só pode ser a viúva endiabrada e corre denunciá-la para a polícia. Rose jura que é inocente, mesmo assim é presa e fica arriscada de perder a guarda da filha. Agora, a policial feminina Gladys Moss (Anjana Vasan) decide encontrar o verdadeiro culpado, com a ajuda de um grupo de mulheres fartas de tanto machismo. O processo corre eivado de absurdos legais, disparates preconceituosos e incontáveis afrontas aos direitos individuais, mas estamos numa época em que as mulheres acabaram de ser emancipadas e ainda precisam conquistar seu próprio espaço.
        Quem primeiro tratou desse episódio real foi a historiadora Emily Cockayne, em seus livros intitulados Cheek by Jowl: A History of Neighbours e Penning Poison: A History of Anonymous Letters, com base nos processos que tramitaram na justiça britânica. O comediante e roteirista Jonny Sweet, que tem larga experiência na TV, tomou conhecimento dessa trama escandalosa para a época e encontrou o que procurava: personagens fascinantes, envolvidos em muita confusão, tomados por emoções complexas e preocupados com o uso da linguagem – é por meio dela que exercem o poder e disputam seus espaços. Sweet interferiu na trama aqui e ali, desenvolveu melhor os personagens e resgatou a alma cômica dessa história inusitada. Escreveu um roteiro tão engraçado que despertou o interesse dos produtores e atraiu a atenção de vários comediantes de destaque.
        A diretora Thea Sharrock, que tem experiência na televisão e no cinema – dirigiu o filme Como Eu Era Antes de Você – entrou no projeto disposta a encontrar o tom certo para essa comédia de época, que esbraveja contra o machismo, mas não resvala nas distorções do feminismo panfletário. Aliás, ao adotar uma estética visual realista, a diretora resgatou a atmosfera dos anos 1920 e estabeleceu uma comparação didática com a realidade vivida pelas mulheres cem anos depois. Ela também conseguiu reunir um elenco experiente, não só nas nuances da comédia, mas também na habilidade em manter aquele tipo de timming cômico que costumamos ver principalmente nos palcos. O roteirista Jonny Sweet incluiu no texto várias sugestões dos atores e se deliciou com uma mistura de diálogos modernos com o conteúdo das cartas centenárias.
        Na vida real, a história que acompanhamos em Pequenas Cartas Obscenas chegou até a Câmara dos Comuns e foi debatida no Parlamento; ganhou as páginas dos jornais e movimentou os programas de rádio. Os três personagens principais existiram de fato e algumas das maluquices retratadas no filme – truques com tinta invisível e detetives escondidos em caixas de correio – aconteceram de verdade. Ao trazer isso tudo para as telas, os realizadores tiveram o bom senso de acrescentar algumas pitadas de ficção, resgatar um certo clima de mistério e retratar os personagens em camadas mais profundas, sem abandonar a diversão e a comédia.
        Outros realizadores, mais interessados em explorar os aspectos bizarros da mesma história, talvez assumissem uma abordagem diferente: enfatizariam o drama, os distúrbios psicológicos, os conflitos sociais, os disparates sexistas, as injustiças... Talvez chegassem a um filme bem mais soturno, sombrio e até violento. Mas aí, não seria Pequenas Cartas Obscenas; seria um outro filme, cujo título ainda não consigo imaginar. Dependendo do talento dos realizadores, poderia também ser um ótimo filme.

Resenha crítica do filme Pequenas Cartas Obscenas

Título original: Wicked Little Letters
Ano de Produção: 2023
Direção: Thea Sharrock
Roteiro: Jonny Sweet
Elenco: Olivia Colman, Jessie Buckley, Anjana Vasan, Timothy Spall, Joanna Scanlan, Gemma Jones, Malachi Kirby, Lolly Adefope, Eileen Atkins, Hugh Skinner, Paul Chahidi, Alisha Weir, Jason Watkins, Richard Goulding, Tim Key, Jonny Sweet, Krishni Patel e Cyril Nri

Comentários

  1. Que bacana de história! Nova para mim. Vou assistir.

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  2. Gostei muito desse filme e agora, com você nos informando que foi baseado numa história real , gosto mais ainda. Excelente crônica, sempre nos acrescenta algo importante.

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    1. Ah, muito obrigado. Fico feliz em ter você acompanhando a Crônica de Cinema.

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  3. Grande análise! Parabéns.

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