Kill Bill: o poder narrativo de um diretor inovador

Kill Bill: direção de Quentin Tarantino
UM SÓLIDO CASTELO DE REFERÊNCIAS CINEMATOGRÁFICAS
Tinha doze para treze anos quando entrei pela primeira vez no Cine Arlequim, um pulgueiro no centro de Curitiba, que mantinha uma promoção imperdível: pelo preço de um único ingresso, era possível assistir a três filmes, exibidos em sequência. Esse não era, entretanto, o maior atrativo; o que me animava era o fato de que um dos três filmes era sempre uma pornochanchada, proibida para menores de 18 anos. Se chegasse no começo da sessão e comprasse uma entrada inteira, o bilheteiro fazia vista grossa. Uma vez na plateia, teria que esperar uma eternidade para finalmente ver o que de fato interessava; teria que passar por dois filmes de kung fu, daqueles produzidos na China, com legendas em português.Nos primeiros anos da década de 1970, as pornochanchadas que alvoroçavam meus hormônios eram produções ingênuas e leves, se comparadas às de hoje – no máximo exibiam cenas de nudez parcial, como aquelas que a televisão aberta agora está acostumada a exibir nas novelas. Já os filmes de kung fu não economizavam na violência gráfica; redundavam em intermináveis cenas de luta, coreografadas com precisão e regidas por outras leis da física. O herói lutava com uma infinidade de oponentes ao mesmo tempo e derrotava todos; o vilão era um senhor feudal poderoso e sem limites morais; a mocinha também era boa de luta e surpreendia com golpes esvoaçantes. De um filme para outro, o enredo tinha poucas variações, mas a estética era sempre a mesma: inspirados nos westerns spaguetti, abusavam dos planos abertos e insistiam em lançar mão do zoom; a trilha sonora era retumbante e a sonoplastia exagerada – um simples movimento de braço resultava num sibilo metálico desconcertante.
A mesmice aborrecia. O segundo filme sempre virava uma peça de humor e a garotada na plateia se desmanchava em escárnio. Com o tempo, as sessões triplas viraram um martírio e a proliferação dos pulgueiros levou ao ocaso do Cine Arlequim. As pornochanchadas ficaram desinteressantes com a chegada dos filmes mais apimentados e o gênero kung fu derivou para algo mais próximo dos filmes de ação – e uso aqui a palavra “algo” com um acento pejorativo. Pornochanchadas e filmes de kung fu ficaram lá na pré-adolescência, atados por motivos circunstanciais; tornaram-se sinônimos de cinema desqualificado. Até que surge um Quentin Tarantino e lança, em 2003, o filme Kill Bill, uma obra em dois volumes que resgata a era das lutas marciais intermináveis.
Antes de seguir em frente, cabe um aviso: Kill Bill nada tem de desqualificado. É um ótimo filme, com atributos de sobra para fazer jus à reputação de Tarantino como cineasta inovador e criativo. Aqui, ele revisitou um estilo de fazer cinema que ficou no passado, mas não se prende aos clichês; acrescentou referências sofisticadas, extraídas dos faroestes, dos mangás e dos filmes japoneses de samurais. Concentrou-se em contar uma história de vingança, protagonizada por uma personagem obcecada, que bem poderia ter frequentado os clássicos spaghetti dos anos 1970. Foram os filmes chineses de kung fu, no entanto, que serviram de base para o diretor – durante a escrita do roteiro ele assistiu a dezenas de produções do gênero, para se familiarizar com o estilo. Vejamos como ficou a sinopse:
Kill Bill conta a história da Noiva (Uma Thurman), uma assassina profissional, membro de uma gangue autointitulada Víboras Mortais, chefiada pelo tal Bill (David Carradine). Durante seu casamento, os Víboras Mortais invadem a igreja e matam todos; o próprio Bill atira da cabeça da Noiva, depois de descobrir que ela está grávida de um filho seu. Por uma conjunção de fatores cinematográficos, a Noiva sobrevive, mas amarga um estado de coma por quatro anos. Quando desperta, dá início a uma sanguinária epopeia de vingança; ela prepara uma lista de alvos a serem eliminados e parte para a briga: Vernita Green (Vivica A. Fox), O-Ren Ishii (Lucy Liu), Elle Driver (Daryl Hannah), Budd (Michael Madsen) e uma infinidade de outros habilidosos espadachins e malfeitores. O objetivo final é... matar Bill!
Kill Bill foi lançado em dois volumes. Tarantino realizou um filme com mais de quatro horas de duração e não teve alternativa senão cortá-lo ao meio; a solução comercial não prejudicou a obra, ao contrário, ressaltou a natureza episódica da sua história. No primeiro volume, o diretor prioriza a atmosfera oriental e inclui alguns elementos de western; no segundo, a linguagem do western impera, apenas pontuada por elementos orientais. Curiosamente, o personagem Bill não é visto no Volume 1 – apenas ouvimos sua voz. Já no Volume 2, ele aparece desde a primeira cena.
A maior qualidade de Kill Bill é a de não se levar a sério demais. É um filme de ação, focado nas artes marciais, que enaltece a violência e celebra a vingança. Não há suspense, não há mistério, não há densidade dramática. O próprio título é um spoiler – não resta dúvidas de que o último nome da lista será riscado com rompantes de crueldade. Tarantino, porém, jamais deixa de surpreender; seu senso de humor ácido está presente o tempo todo e até mesmo a sua verve verborrágica dá as caras no final, para desconcertar aqueles que não esperam nada além de sangue respingando na tela.
A principal surpresa em Kill Bill, no entanto, vem logo no primeiro volume, quando o diretor insere uma sequência animada de 15 minutos, para contar a triste história da personagem O-Ren Ishii. Tarantino abandona o live-action e recorre a um dos mais famosos estúdios de anime do Japão, a Production I.G., para nos brindar com um visual tão apurado quanto deslumbrante. Observe, leitor, que não se trata de mera pirotecnia ou um devaneio para nos distrair; o poder narrativo desta curta anime acrescentou uma nova dimensão estética para a personagem e trouxe elementos dramáticos que de outra forma se perderiam. Foi uma tacada ousada e inovadora de Tarantino, que imprimiu uma marca de originalidade para o seu filme.
Ao assistir a Kill Bill, talvez você, leitor, não viva a mesma experiência estética oferecida pelos filmes de kung fu que inundaram nossos cinemas nos anos 1970 – foi apenas um pretexto que encontrei para iniciar minha crônica. A verdade é que esta é uma obra diferente, autêntica e original, com um visual apurado e aquele tipo de ação estilizada que nos acostumamos a apreciar nos filmes de Quentin Tarantino.
Resenha crítica do filme Kill Bill
Ano de produção: 2003Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino
Elenco: Uma Thurman, Lucy Liu, Vivica A. Fox, Daryl Hannah, Michael Madsen, David Carradine, Sonny Chiba, Chiaki Kuriyama, Gordon Liu, Michael Parks, Julie Dreyfus, Michael Bowen, Jun Kunimura, Kenji Ohba, Yuki Kazamatsuri, James Parks, Goro Daimon, Shun Sugata, Akaji Maro, Kazuki Kitamura, Jonathan Loughran, Sakichi Sato, Ambrosia Kelley, Yōji Tanaka, Issey Takahashi, Juri Manase, Ai Maeda, Naomi Kusumi e Hikaru Midorikawa
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