O Contador: entretenimento ligeiro e divertido

Cena do filme O Contador
O Contador: direção de Gavin O'Connor

UM PROTAGONISTA MORALMENTE AMBÍGUO, PORÉM CARISMÁTICO

Meu pai era contador. Melhor dizendo, era formado em ciências contábeis, mas jamais exerceu a profissão. Arriscou-se em empreendimentos comerciais que não vingaram e depois refugiou-se na área de vendas em algumas empresas de grande porte. Nunca enxerguei meu pai como um contador: não exibia talentos com a matemática, não perdia tempo com registros e não se apegava a documentos nem carimbos. Sabia, porém, que ele era um contador, porque usava sempre na mão direita um vistoso anel com pedra vermelha – anel de formatura, como ele costumava explicar aos que reparavam nos seus gestos largos. Contadores são metódicos, compenetrados e rigorosos; meu pai era extrovertido, afoito e imprevisível.
        Conheci alguns contadores de verdade – fui cliente de uns e prestei serviços de publicidade para outros. Nenhum deles se parecia com meu pai. Por outro lado, nenhum deles poderia servir de inspiração para um roteirista interessado em criar um filme de ação policial voltado para o circuito de cinema comercial – como é o caso deste O Contador, dirigido em 2016 por Gavin O'Connor. Contadores são desinteressantes, limitados a suas especialidades e desprovidos de impulsos criativos. Mas espere aí! E se tudo isso não passar de puro preconceito meu? E se a estampa de cidadão comum não passar de mero disfarce, para ocultar as façanhas de um tipo heroico e superpoderoso, que age nas sombras para combater os vilões? Ah, basta juntar o título do filme com a foto do protagonista, interpretado por Ben Affleck, para deduzir: é isso mesmo que os realizadores querem que você pense!
        O Contador foi feito para oferecer entretenimento ligeiro, mas tem qualidades que o colocam acima da média dos outros filmes do gênero. Não esconde sua ambição de virar franquia nem o seu despudor em copiar a fórmula de sucesso empregada nos filmes de super-heróis; ainda assim consegue irradiar alguma verdade emocional, enquanto se concentra na sucessão de socos, tiros, perseguições e pancadarias que a plateia espera acompanhar.
        O protagonista é, sim, um sujeito ocupado com as contabilidades, mas tem os talentos e as habilidades marciais dignas de um Demolidor – para citar outro filme similar estrelado pelo mesmo Ben Affleck. A justificativa para a sua infalibilidade? Ele sofre da tal síndrome de Asperger, uma forma amena de autismo que não o impede de levar uma vida normal, nem outra oculta, intensa e violenta; o que a doença faz é potencializar o seu poder de concentração, a sua frieza emocional e a sua obsessão em alcançar seus objetivos. Por sorte, os realizadores não se prenderam a infantilidades e souberam povoar a trama com outros personagens que trazem o necessário contraponto. Para seguir em frente, vamos examinar a sinopse do filme:
        O Contador conta a história de Christian Wolff (Ben Affleck), um autista enfurnado em seu escritório de contabilidade de fachada, enquanto faz fortuna saneando os registros contábeis do crime organizado e de grupos terroristas ao redor do mundo. Quando criança, ele e seu irmão mais novo amargaram uma criação rígida, imposta por um pai militar que os treinou à perfeição em todas as artes marciais. Adulto, Wolff aprendeu a controlar seus transtornos autistas e se manter no anonimato. até ser contratado por Lamar Blackburn (John Lithgow), CEO de uma empresa bilionária, para vasculhar suas contas em busca de fraudes. O que Wolff descobre o mete em confusões e agora ele tem que proteger Dana Cummings (Anna Kendrick), uma contadora inocente, enquanto tenta se livrar de Raymond King (JK Simmons), o diretor do Departamento do Tesouro que tem estado na sua cola. Para complicar, os criminosos colocaram o assassino Braxton (Jon Bernthal) para eliminá-lo do mapa!
        O protagonista de O Contador é um sujeito moralmente ambíguo, movido por interesses pessoais; despreza as pessoas no seu entorno, já que elas sempre sonegaram compreensão e nunca economizaram na crueldade. Diante de circunstâncias urgentes, ele tem a oportunidade de se redimir e fazer... o que é certo! O truque do roteirista Bill Dubuque – ele também escreveu o roteiro de O Juiz – foi apresentar ao espectador todos as implicações e desdobramentos do transtorno autista, revelando o drama de superação do personagem desde sua infância. Imbuídos de empatia, agora podemos aceitar as justificativas e torcer para que Christian Wolff tome jeito.
        O diretor Gavin O'Connor, calejado em diversos filmes de ação, soube explorar as qualidades de um protagonista carismático, que não compreende e nem sabe lidar com as próprias emoções; tem o privilégio e a oportunidade de agir de uma forma inadequada, como tantas vezes nós mesmos gostaríamos de fazê-lo, mas não temos coragem – nossas habilidades de socialização não foram comprometidas por uma síndrome misteriosa e por isso estão sempre se impondo! Infelizmente, o segundo episódio da franquia desceu vários níveis em termos de qualidade; nem considero a possiblidade de assistir a um eventual terceiro episódio!
        Para finalizar, gostaria de confessar que não foi o título do filme que trouxe meu pai à minha memória. Tal elaboração me veio depois que iniciei a redação desta crônica. Pensei nele enquanto assistia ao filme e acompanhava o conturbado relacionamento entre o protagonista e seu pai autoritário. Identifiquei-me com a dinâmica complexa, mas esmiuçá-la aqui seria impróprio e aborrecido. É melhor deixar o leitor com a superficialidade do entretenimento leve e ligeiro proporcionado por O Contador.

Resenha crítica do filme O Contador

Título original: The Accountant
Ano de produção: 2016
Direção: Gavin O'Connor
Roteiro: Bill Dubuque
Elenco: Ben Affleck, Seth Lee, Anna Kendrick, JK Simmons, Jon Bernthal, Jake Presley, Cynthia Addai-Robinson, Jeffrey Tambor, John Lithgow, Jean Smart, Andy Umberger, Alison Wright, Izzy Fenech, Rob Treveiler e Mary Kraft

Comentários

Confira também:

O Despertar de uma Paixão: ao final, muitas reflexões

Menina de Ouro: a história de Maggie Fitzgerald é real?

Siga a Crônica de Cinema