O Paciente Inglês: personagens reais, numa história fictícia

Cena do filme O Paciente Inglês
O Paciente Inglês: direção de Anthony Minghella

UMA FAÇANHA CINEMATOGRÁFICA

Que achado! Encontrar O Paciente Inglês disponível no serviço de streaming foi a salvação para este cinéfilo entediado, aborrecido com tamanha oferta de bobagens que prevalece nesses nossos dias apressados. Realizado em 1996 por Anthony Minghella, o filme conquistou seu lugar no panteão da sétima arte – ficou com nove Óscares e mais uma avalanche de prêmios internacionais até mais importantes. Virou consenso: trata-se de um grande filme, para ser apreciado em suas minúcias e revisitado sempre que precisarmos relembrar como é que se faz cinema de verdade.
        Sim, O Paciente Inglês é uma façanha cinematográfica, mas escrever sobre o filme é transitar pela ponte pênsil que separa o cinema da literatura. É assumir de uma vez por todas que se trata de uma adaptação, um produto diferente do romance que o originou. Os fãs do mundo inteiro que se deliciaram com as páginas escritas, encontram na tela uma versão com diferenças substanciais, mas bastante coerente com a trama principal criada pelo poeta e escritor canadense – nascido no Sri Lanka – Philip Michael Ondaatje. O filme é melhor que o livro? O livro dá de goleada no filme? Essa é a discussão que menos interessa!
        Publicado em 1992, o romance O Paciente Inglês se tornou um sucesso editorial, traduzido para 38 idiomas. Ondaatje levou cerca de seis anos para preencher suas 300 páginas, contando as histórias entrelaçadas de quatro personagens que se cruzam numa remota vila italiana, no finalzinho da Segunda Guerra Mundial. Em grande parte, a trama é contada pelos olhos de um paciente inglês desconhecido, que sobreviveu com o rosto desfigurado, quando seu avião foi abatido. Amores, desencontros, solidões, sonhos, ideais, dores, preconceitos... Revelações durante conversas noturnas e por meio de flashbacks vão penetrando diferentes camadas de personagens sofridos, envolvidos com espionagem, traições, explorações, aventuras... Sempre numa prosa fluente, carregada de tonalidades poéticas. Ou seja: um texto complexo, que pouquíssimos se atreveriam a tentar verter para o cinema.
        O diretor inglês – de ascendência italiana – Anthony Minghella foi destemido. Escreveu ele mesmo o roteiro de O Paciente Inglês, conseguindo um resultado impressionante. É verdade que trocou muitas ideias com o experiente produtor Saul Zaentz, que já tinha no currículo produções como Um Estranho no Ninho e Amadeus e estava decidido a consolidar sua vocação para o Óscar. O próprio autor do romance, Michael Ondaatje, também se juntou à dupla para palpitar nos caminhos da adaptação. Mas antes de entrar nos detalhes, talvez seja mais prudente examinar a sinopse, para orientar os que ainda não assistiram ao filme:
        O Paciente Inglês conta a história do explorador húngaro László Almásy (Ralph Fiennes), que é salvo por beduínos depois que seu avião cai no deserto africano, o deixando com queimaduras graves no rosto e no corpo. Ele termina na Itália sob os cuidados de Hana (Juliette Binoche), uma enfermeira franco-canadense deprimida com as imensas perdas pessoais que a guerra vem lhe impondo. Comovida com a sina do paciente inglês, desfigurado, desmemoriado e agarrado às fotos e anotações que carrega dentro do livro Histórias de Heródoto, ela consegue permissão para se instalar nas ruínas de um mosteiro enquanto ele agoniza. Logo se juntam a eles o agente da inteligência David Caravaggio (Willem Dafoe) e o Tenente Kip (Naveen Andrews), um sique especialista em desarmar minas e bombas. Enquanto Almásy revela seu passado trágico, em torno do triângulo amoroso que viveu com a bela Katharine Clifton (Kristin Scott Thomas), casada com o aventureiro britânico Geoffrey (Colin Firth), o passado, o presente e o futuro incerto vão se embaralhando em tormentos, escolhas difíceis e lampejos de esperança.
        Apesar de fazer referências a um personagem real, o explorador László Almásy, a trama de O Paciente Inglês é inteiramente fictícia. Michael Ondaatje a criou com detalhes extraídos da sua própria imaginação de poeta. Nem sequer imaginou a possibilidade de transformá-la em um filme. Na medida em que Anthony Minghella lhe apresentava os incontáveis tratamentos do roteiro, o autor validava todas as mudanças, admitindo que o filme, dada à sua natureza audiovisual, deveria ganhar silhueta própria.
        Em termos narrativos, o livro é bastante complicado. Traz passagens fragmentadas, combinando descrições detalhadas e abordagens poéticas. Porém, por meio da fotografia exuberante assinada por John Seale, o diretor materializou as belas imagens imaginadas com sensibilidade pelo autor. Mas é preciso ressaltar que Minghella desenhou todas as cenas, gerando cinco cadernos que resultaram num storyboard completo do filme. Estavam todos lá, os planos, os ângulos, os pontos de vista, as palhetas de cores – uma para cada ambiente! Ah, e vale lembrar também que a trilha sonora composta por Gabriel Yared é outra preciosidade. A habilidade do diretor, que também tem formação musical, em encaixá-la com perfeição no fluxo narrativo é notável.
        No filme O Paciente Inglês, a ênfase vai toda para a história de amor vivida por Almásy e Katharine, contada em flashbacks. Além disso, enquanto o romance se abre para mostrar os pontos de vista dos múltiplos personagens, o filme nos mostra a história pelos olhos do paciente inglês e de sua enfermeira. No livro, as conexões entre presente e passado são mais frequentes, com a presença de vários personagens excluídos no filme. Na versão para as telas, a presença do tenente kip é bastante reduzida, o que atenua as discussões sobre colonialismo inseridas no romance. E no cinema, é a beleza das imagens impressionantes o que mais nos encanta.
        Cinema e literatura têm lá suas confluências, mas geram produtos bem diferentes. É claro que nós, os cinéfilos, temos uma quedinha pelo espetáculo audiovisual, mas também gostamos de saborear um bom livro. A nossa luta é para arranjar tempo suficiente para fruir os dois! No caso de O Paciente Inglês, esse esforço vale a pena!

Resenha crítica do filme O Paciente Inglês

Ano de produção: 1996
Direção: Anthony Minghella
Roteiro: Anthony Minghella
Elenco: Ralph Fiennes, Juliette Binoche, Willem Dafoe, Kristin Scott Thomas, Naveen Andrews, Colin Firth, Julian Wadham, Jürgen Prochnow, Kevin Whately, Clive Merrison, Nino Castelnuovo, Hichem Rostom e Peter Rühring

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