O Talentoso Ripley: um remake imprescindível
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O Talentoso Ripley: direção de Anthony Minghella
UMA ILHA DE PODRIDÃO CERCADA DE BELEZAS
Tempos atrás, escrevi uma crônica sobre a minissérie Ripley, dirigida em 2024 por Steven Zailian. Lembro que Ludy e eu maratonamos os oito episódios com avidez, hipnotizados por aquela produção envolvente; minha mulher, inclusive, ficou interessada em rever o filme O Talentoso Ripley, dirigido em 1999 por Anthony Minghella – o que fizemos dias depois. Num primeiro momento, considerei desnecessário escrever sobre essa adaptação do romance de Patricia Highsmith; seria cair em redundância, já que o personagem e a trama de assassinatos que ele protagoniza estão descritos no meu texto anterior. Acontece que a qualidade do cinema realizado por Minghella é tão notável que mudei de ideia; decidi revisitar o mundo do psicopata gélido que consegue se safar da punição por seus crimes, graças a uma combinação de sorte com uma gélida meticulosidade.O romance de Patricia Highsmith atrai o leitor com uma prosa austera. Há pouca informação descritiva, raros adjetivos e poucos detalhes sobre os demais personagens, que são tratados no âmbito da epiderme. O que nos fisga é a oportunidade de penetrar no mundo interno do protagonista; enxergar a realidade pela perspectiva de um psicopata que fervilha em sentimentos – da mais genuína excitação ao mais perturbador desespero. Entendemos suas motivações, reprovamos suas ações e mal conseguimos acreditar no tamanho da sua ousadia; Ripley é capaz de libertar as barbaridades que nós, seres humanos normais, mantemos trancafiadas em nossas mentes.
Adaptar para o cinema um romance baseado principalmente nos pensamentos secretos do protagonista não é tarefa simples. Cada leitor cria seu próprio filme interno, a partir do repertório de vida que acumulou; um cineasta faz o mesmo, mas tem o poder de compartilhar seu filme interno com o público, usando seu domínio da linguagem cinematográfica e sua capacidade de realização para surpreender o espectador. Quem primeiro adaptou a história de Ripley para as telas foi diretor francês René Clement; em 1960 ele dirigiu Purple Noon, filme estrelado por Alain Delon em seu primeiro papel relevante. Quase quarenta anos depois, a versão de Anthony Minghella recriou o visual Technicolor dos anos 1950, por meio da brilhante fotografia assinada por John Seale; também ampliou a profundidade estética do romance, ao acrescentar uma trilha sonora perspicaz, composta por Gabriel Yared. O resultado é um filme notável, que está aí para nos lembrar de que o diretor foi um dos grandes do seu tempo.
Nesta versão escrita pelo próprio Minghella, Tom Ripley (Matt Damon) é um jovem astuto, que consegue imitar à perfeição os modos de qualquer pessoa. Graças a um casaco que tomou emprestado para ir a um evento, conhece o empresário Herbert Greenleaf (James Rebhorn), que o contrata para ir à Itália, tentar resgatar seu filho, Dickie (Jude Law) – o riquinho se tornou refém da dolce vita e não quer mais saber de voltar para casa. Acontece que Ripley também se encanta com a vida boa que encontra, ao tornar-se amigo de Dickie e sua namorada, Marge (Gwyneth Paltrow); passa a viver como hóspede deles, às custas da mesada que chega religiosamente. Na medida em que o comportamento de Ripley inspira desconfianças, a situação culmina em atos extremos.
O diretor Anthony Minghella já havia nos presenteado com o excelente O Paciente Inglês, um filme superlativo, com lugar garantido entre as obras-primas da sétima arte. Em O Talentoso Ripley ele repete a dose e nos entrega um cinema minucioso e visualmente deslumbrante. Rodado em locações na Itália – com suas paisagens exuberantes e seu notável estofo cultural, o país é tratado como um personagem substancial –, o filme se passa na cidade fictícia de Mongibello, compilada a partir de várias aldeias em ilhas próximas a Nápoles. O diretor também caprichou na formação do elenco: recrutou um Matt Damon magnético, recém-saído do estrondoso sucesso de Gênio Indomável, além dos excelentes Jude Law, Gwyneth Paltrow, Cate Blanchett e Philip Seymour Hoffman.
O roteiro escrito por Minghella traz alguns ajustes em relação ao romance, para melhor acomodar a trama dentro da gramática cinematográfica: o primeiro crime cometido por Ripley não é premeditado; acontece num rompante passional, como que por acidente, o que desencadeia uma sequência de oportunidades para que o protagonista siga com sua ambiciosa trajetória. O diretor também se dedica a explorar os talentos de Ripley enquanto improvisador, por meio de uma elaborada trilha sonora, que inclui desde música barroca e clássica e também standards do jazz – um contraponto ao imperativo visual evocado pelo romance.
Tom Ripley não tem escrúpulos em assumir uma identidade que não lhe pertence; pelo contrário, prefere posar como um falso alguém a ser eternamente um zé ninguém. É com assombro e desconforto que o vemos escapar ileso; o diretor, entretanto, não deixa de ressaltar o filtro moral que usa o tempo todo em suas lentes: condenado à solidão, o protagonista termina sozinho, ardendo em um verdadeiro inferno de infelicidade que ele mesmo faz questão de manter em funcionamento. Cercado de beleza por todos os lados – o cinema exuberante e compenetrado de Anthony Minghella nos lembra de qual é o lado certo, para o qual devemos torcer – Ripley será sempre uma ilha de mesquinharia e podridão.
Resenha crítica do filme O Talentoso Ripley
Título original: The Talented Mr. RipleyAno de produção: 1999
Direção: Anthony Minghella
Roteiro: Anthony Minghella
Elenco: Matt Damon, Gwyneth Paltrow, Jude Law, Cate Blanchett, Philip Seymour Hoffman, Jack Davenport, James Rebhorn, Sergio Rubini, Philip Baker Hall, Celia Weston, Rosario Fiorello, Stefania Rocca, Ivano Marescotti e Silvana Bosi
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