Cidadão Kane: por que ele é tão importante, afinal?
COMO HOLLYWOOD CONSOLIDOU SEU PROCESSO DE FAZER FILMES
Hoje em dia, ser um cinéfilo é fácil; há 50 anos, nem tanto. Este cronista apaixonado por cinema ainda se recorda das dificuldades para cultivar relacionamentos mais íntimos com os filmes. O lugar mais indicado para isso era... a livraria! Era mais fácil ler sobre os filmes do que assistir a eles. Colecionei revistas e formei uma pequena biblioteca temática, mas tinha que espaná-la periodicamente, para sacudir a frustração de não poder assistir a todos os filmes que gostaria. Ficava de olho na grade de programação dos cinemas, que era publicada pelos jornais, enquanto garimpava os poucos filmes exibidos tarde da noite na televisão – uma telinha estreita, que nem conseguia exibir a totalidade de uma película cinematográfica.Não estou reclamando! Na verdade, agradeço por ter passado minha adolescência em Curitiba, uma cidade com cerca de uma dúzia de salas de exibição – a maioria inserida no circuito comercial, imune ao assédio das pornochanchadas e dos insuportáveis filmes de kung-fu! Por sorte, contava também com o cineclube da Escola Técnica e com a cinemateca da cidade. Pude assistir a muitos filmes e saciar minha fome de cinema, embora não tivesse a liberdade de escolher o que incluir na dieta; era aproveitar qualquer oportunidade que aparecesse!
Os cinéfilos de hoje estão no comando. Pelos serviços de streaming jorram filmes aos borbotões; pescar um longa que atenda ao paladar do dia chega a ser um esporte agradável. Podemos pensar em um título qualquer e, com poucos cliques, saciar a curiosidade. Faça um teste: comece pelo filme Cidadão Kane, dirigido em 1941 por Orson Welles. Assisti a esse filme por pura sorte, em 1977, quando entrei numa sessão improvisada no cineclube; agora ele está disponível até no YouTube! Já havia lido bastante sobre ele para saber da sua importância e aproveitei cada minuto para aprender um pouco mais sobre a arte de fazer filmes.
Cidadão Kane é um filme antigo, sem a velocidade e a fúria das produções modernas; contudo, merece ser visitado por todos aqueles que se interessam por cinema. Os críticos especializados de ontem e de hoje, sem medo de soar petulantes, afirmam: é o melhor filme de todos os tempos. Mas afinal, por que ele é tão apreciado? Foi realizado há mais de 80 anos, é todo em preto-e-branco e está repleto de cenas demoradas; ainda por cima, traz diálogos intermináveis (para os padrões de hoje). Os espectadores mais jovens, familiarizados com linguagens cinematográficas de todas as vertentes, não enxergarão novidades – nada que já não tenham visto em milhares de outros filmes. Mas como era revolucionário quando surgiu!
Cidadão Kane conta a história de Charles Foster Kane (Orson Welles), um personagem fictício construído à imagem e semelhança do magnata William Randolph Hearst; esse sim, uma celebridade da vida real, que ergueu um vasto império das comunicações, formado por jornais, revistas, emissoras de rádio e agências de notícias. No filme, o tal cidadão Kane nasceu pobre e se tornou um dos homens mais ricos do mundo. Sua morte, de repente, grita nas manchetes dos jornais e vira assunto por toda parte. O jornalista Jerry Thompson (William Alland) é encarregado de desvendar a vida do milionário e passa a entrevistar todos os que o conheceram, em busca dos detalhes. É assim que vemos, aos poucos, ser desenhado um retrato preciso de Kane, sua história, sua personalidade e suas intimidades.
Quando realizou esse filme, Orson Welles tinha apenas 24 anos; recebeu carta branca da RKO Radio Pictures para fazer qualquer filme que bem entendesse, por causa da espetacular repercussão que alcançou com a transmissão radiofônica de A Guerra dos Mundos – os americanos acreditaram piamente que estavam sendo invadidos por marcianos beligerantes. O diretor decidiu ousar. Convocou Herman Mankiewicz, um roteirista beberrão e encrenqueiro, para ajudá-lo a desenvolver o roteiro de um filme que se chamaria "The American".
Herman Mankiewicz escreveu, sob o comando de Welles. Criaram uma história que até hoje funciona muito bem. Costuraram uma narrativa não linear, repleta de flashbacks pertinentes e coerentes. A estrutura é circular: passamos várias vezes pelos episódios da biografia, cada vez com um pouco mais de profundidade. Ficamos com a sensação de que o tempo cronológico é abandonado em favor do tempo emocional. O cinema que inventaram é uma espécie de compilado de tudo o que a sétima arte já havia desenvolvido até então.
Vindo do rádio, Orson Welles tinha muita segurança no trato com o som e com os diálogos; experimentou estilos mais ágeis e envolventes, para inovar em relação ao que os espectadores ouviam normalmente nos filmes. No set de filmagem, foi meticuloso: ensaiou as cenas e ajustou o roteiro antes de filmar. Além disso, usou a maquiagem como recurso dramático. Também arregimentou um diretor de fotografia experiente e inovador, Gregg Toland, que já havia filmado com John Ford. Conseguiu um visual deslumbrante, onde a luz e a sombra, derramadas sobre planos ousados, ajudaram a contar a história. Para completar, deu a Bernard Herrmann total liberdade para compor uma trilha sonora independente para cada uma das cenas do filme.
Em resumo: Orson Welles filmou de um jeito inovador para a época e desenvolveu um processo de trabalho que se tornou padrão em Hollywood. Sua influência pode ser vista em filmes de todos os grandes cineastas: Coppola, Kubrick, Scorcese, Spielberg... Assistir a Cidadão Kane é como se debruçar em um grande clássico da literatura. É um filme para ser apreciado com respeito e reverência.
Recentemente, em 2020, David Fincher realizou o filme Mank, que conta a história de como o roteirista Herman Mankiewicz se envolveu na criação do roteiro de Cidadão Kane. O diretor também mostra a movimentação nos bastidores desse clássico e a repercussão entre as celebridades que menciona. Também vale a pena conferir.
Resenha crítica do filme Cidadão Kane
Data de produção: 1941
Direção: Orson Welles
Roteiro: Orson Welles e Herman Mankievwicz
Elenco: Orson Welles, Joseph Cotten, Dorothy Comingore, Agnes Moorehead, Ruth Warrick, Ray Collins, Erskine Sanford, Everett Sloane, William Alland, Paul Stewart, George Coulouris, Fortunio Bonanova, Gus Schilling, Philip Van Zandt, Georgia Backus, Harry Shannon, Sonny Bupp e Buddy Swan
Resenha crítica do filme Cidadão Kane
Direção: Orson Welles
Roteiro: Orson Welles e Herman Mankievwicz
Elenco: Orson Welles, Joseph Cotten, Dorothy Comingore, Agnes Moorehead, Ruth Warrick, Ray Collins, Erskine Sanford, Everett Sloane, William Alland, Paul Stewart, George Coulouris, Fortunio Bonanova, Gus Schilling, Philip Van Zandt, Georgia Backus, Harry Shannon, Sonny Bupp e Buddy Swan
Suas crônicas são verdadeiras aulas sobre a sétima arte. Parabéns. Quando sairá o livro?
ResponderExcluirObrigado, Davilmar!!! Meus projetos editoriais estão andando - a passos de tartaruga, é verdade, mas ainda estão de pé! Em breve terei novidades.
ExcluirAssisti anos atrás. Filne sério.
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