O Homem Elefante: um drama tocante, que grita uma mensagem humanista

Cena do filme O Homem Elefante
O Homem Elefante: filme dirigido por David Lynch

REVIRANDO SENTIMENTOS VERDADEIROS E TRANSFORMADORES

Para ilustrar minha crônica sobre O Homem Elefante, filme de 1980 dirigido por David Lynch, passei um bom tempo buscando uma foto promocional na internet. Encontrei várias. A maioria exibindo o ator John Hurt, oculto atrás da máscara usada para caracterizar as horríveis deformidades que condenaram seu personagem a uma vida de dor e sofrimento. São imagens de uma tristeza gigantesca, de cortar o coração. Logo percebi que tais imagens chocantes nada tinham de promocionais. Ao contrário, serviriam para afugentar os leitores mais sensíveis. Então escolhi usar uma foto onde John Merrick está oculto por um capuz desengonçado – na verdade, um saco de estopa com um único furo, para o coitado poder olhar por onde anda!
        De repente, diante da minha escolha, percebi que estava vivendo o mesmo drama experimentado pelos realizadores do filme. A imagem que escolhi era a mesma utilizada em todos os pôsteres e materiais de divulgação. Certamente tomaram cuidados para evitar que os espectadores titubeassem na hora de entrar na sala de cinema. Uma vez lá dentro, seriam arrebatados por uma história pungente, mas dramatizada com sensibilidade. Seriam magnetizados por um personagem humano, inteligente e sentimental, com muito a revelar e com o qual é fácil se envolver.
        Com essa introdução, minha vontade era falar da hipocrisia que nos ronda e nos impele em certas atitudes. Imaginamos as dores físicas e emocionais de um homem banido da normalidade por razões que não pode evitar. Ficamos penalizados e somos os primeiros a levantar indignados, quando algum idiota vem com discriminações e injustiças. Porém, é mais confortável e adequado que panos sejam colocados para evitar choques incômodos... Mas pensei melhor e considerei injusto falar em hipocrisia. A história de Merrick é tão contundente que chega rasgando várias das nossas camadas, com impactos diferentes de espectador para espectador.
        O primeiro mérito de O Homem Elefante é retirar de uma vez o saco de estopa que protege o personagem – ou protege a nossa sensibilidade! Em questão de algumas cenas já estamos enxergando o ser humano por trás das deformidades. Já estamos envolvidos pelo cinema competente, criativo e artisticamente relevante que costuma sair das lentes de David Lynch. Naquele começo de década, a história real do homem que passou pela vida no final do século XIX carregando o peso de deformidades assustadoras causou impacto. A fotografia em branco e preto, a inventividade surreal e o primoroso tratamento musical de John Morris resultaram numa abordagem emocional e artística!
        O filme conta a história de John Merrick (John Hurt), relegado a ser nada mais do que uma atração circense, exibido em um show de horrores itinerante. Penalizado, o Dr. Frederick Treves (Anthony Hopkins) o resgata e o põe em um hospital de Londres, a princípio para examiná-lo. O médico não consegue curar suas deformidades, nem sequer ajudá-lo com qualquer tipo de tratamento, mas o acolhe no hospital indefinidamente. A presença do Homem Elefante incomoda muita gente e causa problemas para o hospital, até que a Rainha da Inglaterra, penalizada, intervém e concede a Merrick a residência permanente por lá. Ao conviver com o paciente, o Dr. Treves descobre o ser humano gentil, inteligente e sensível que habita aquele corpo deformado, criando com ele fortes laços afetivos. Aos poucos o médico apresenta Merrick à alta sociedade britânica e sua vida parece que finalmente vai mudar. Porém, a miséria humana e a mesquinharia sem limites tentam arrastá-lo de novo para o submundo da bizarrice.
        Antes de virar filme, O Homem Elefante nasceu como peça de teatro, escrita por Bernard Pomerance em 1979. No entanto, os realizadores não se basearam nela para construir a versão cinematográfica. Com roteiro assinado por Christopher De Vore e Eric Bergren, com intervenções do próprio David Lynch, o filme foi baseado na história real de Joseph Merrick, narrada nos livros The Elephant Man and Other Reminiscences, de Frederick Treves e The Elephant Man: A Study in Human Dignity, do antropólogo Ashley Montagu. No filme, David Lynch trocou o nome do personagem para John Merrick.
        O produtor Jonathan Sanger, empolgado com a possibilidade de realizar um grande filme, apresentou o roteiro a Mel Brooks, que imediatamente comprou a ideia. Sim, estamos falando do comediante e diretor de cinema que fez sucesso com suas comédias impagáveis. Foi ele quem contratou David Lynch, que na época trazia um único filme no currículo. Assim, realizado pela produtora Brooksfilms, O Homem Elefante não traz o nome de Mel Brooks nos seus créditos - por iniciativa própria, já que o comediante temia contaminar o caráter dramático da obra.
        O Homem Elefante é um filme tenso, que irradia uma estranha beleza, resultado em parte do estilo surrealista que impele o diretor. Mas é preciso dizer que, ao mesmo tempo, David Lynch se entrega com responsabilidade aos cânones de Hollywood, para realizar um filme destinado ao Óscar. Ele grita uma mensagem humanista e moralista, fazendo questão de escancarar as deformidades de Merrick e jogá-las para o público. Mais do que lágrimas emocionadas, consegue revirar sentimentos verdadeiros, que para nós, espectadores, se mostram transformadores. 
Ninguém sai impune da sala de cinema!
        Não há como não se comover com as atuações de John Hurt, Anthony Hopkins e Anne Bancroft. Indicado para oito óscares, saiu da festa sem nenhum, para ser lembrado como um dos melhores filmes daquela década. A cena final, ao som de Adagio for Strings, de Samuel Barber, é de cortar qualquer coração – foi o primeiro filme a apresentar essa peça musical, depois utilizada em Óleo de Lorenzo e Platoon.

Resenha crítica do filme O Homem Elefante

Data de produção: 1980
Direção: David Lynch
Roteiro: Christopher De Vore, Eric Bergren e David Lynch, 
Elenco: John Hurt, Anthony Hopkins, Anne Bancroft, John Gielgud, Wendy Hiller, Freddie Jones, Dexter Fletcher, Michael Elphick, Hannah Gordon, Helen Ryan, John Standing, Lesley Dunlop, Morgan Sheppard, Kenny Baker e Phoebe Nicholls

Comentários

  1. Ouvi muito falar desse filme, contudo não me lembro ou sei porque não o vi. Tivesse visto, tenho certeza de que me lembraria. Sempre fui piolho de cinema e já tive época de ir à matinee, soirée e tb à noite. Essa crônica me fez lamentar não tê-lo visto e acredito que não deva estar disponível em catálogos, já que são raras ofertad de bons filmes. Parabéns ao cronista.

    ResponderExcluir
  2. Parabéns pelo texto, Fábio. e também pelo viés da abordagem. Isso só evidenciou a profunda questão humana contida neste belo filme.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado rmarinsky! O tema é delicado e na medida em que o encaramos vamos revirando camadas emocionais cada vez mais profundas. E como você disse, é um belo filme, apesar das feiuras que ele retrata.

      Excluir
  3. Excelente texto ! Obrigada!

    ResponderExcluir
  4. Bem isso, acertando novamente em sua excelente resenha , este filme é uma obra prima, não entendo.. deveria ter saído com o máximo das premiações!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado! Felizmente, a falta de premiações não prejudicou o filme.

      Excluir
  5. (Clint Eliot) Um grande filme que denuncia a brutalidade de uma epoca na qual pessoas deformadas eram as vezes obrigadas a ser exibidas como atrações para poder sobreviver em parques de diversoes sinistros. Infelizmente mesmo depois de morto John Merrick quase foi vitima de uma outra humilhação. Em 1980 o cantor Michael Jackson-famoso por suas bizarrices -resolveu comprar os restos mortais do "Homem Elefante" para complementar sua coleção de artigos estranhos e usar isso como golpe de publicidade em sua carreira. A Faculdade de Medicina do Hospital de Londres no entanto recusou-se a vende-los mesmo depois que ele resolveu duplicar a oferta para um milhão de dolares. “Temos a forte sensação de que seria bastante errado, em termos éticos, vender os restos mortais de John Merrick por dinheiro. Estamos sempre desesperados por fundos de pesquisa e quantias desse tamanho são atraentes, mas não estamos no negócio de vender os restos mortais”, afirmou o secretário David Edwards à Associated Press. Apesar da história ter começado para ser uma jogada de marketing favorável ao Rei do Pop, o astro seguiu com o apelido de Wacko Jacko (Doido Jacko) nos tabloides pelo resto da carreira. Jackson voltou a citar o episódio no clipe de “Leave Me Alone”, single do álbum Bad (1989). No vídeo, o cantor dança ao lado da animação do esqueleto do Homem Elefante e critica a imprensa. Lastimavel...

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Confira também:

Menina de Ouro: a história de Maggie Fitzgerald é real?

Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo: nada importa, nem o cinema!

Siga a Crônica de Cinema