Os Gritos do Silêncio: fugindo do extermínio no Camboja

Cena do filme Os Gritos do Silêncio
Os Gritos do Silêncio: filme dirigido por , Roland Joffé

O JORNALISMO REGISTRA OS FATOS, O CINEMA REVOLVE O DRAMA

Imagino Karl Marx e Friedrich Engels fumando seus charutos e bebendo ao lado da lareira, enquanto escolhem as palavras certas para rechear seus manifestos contra o sistema capitalista. Um impõe como prioridade acabar com a propriedade privada, o outro, primeiro quer desestruturar a família. Um deseja acabar com a interferência da religião, o outro, garante que é a liberdade individual que precisa ser limitada. Espiritualidade? Moral tradicional? O que importa são os bens materiais. Os meios de produção têm que passar para as mãos do estado!
        Estou certo de que a dupla não se julgava inofensiva. Eram revolucionários dispostos a quebrar todos os ovos para fazer suas omeletes; ainda assim, dou a eles o benefício da dúvida: talvez não atinassem para as atrocidades que seriam cometidas pelos seus futuros seguidores. Com algumas variações, a mesma sandice coletivista infectou de totalitarismo diversos criminosos em todos os continentes; nos manuscritos de Marx e Engels eles encontraram justificativas para todo tipo de aberração pragmática que desejassem instaurar. Onde tomaram o poder, promoveram genocídios.
        De todos os déspotas coletivistas, talvez o mais abjeto tenha sido o famigerado Pol Pot – certo, caro leitor, confesso que não tenho régua para medir a torpeza de tantos comunistas, nazistas, socialistas e fascistas que já disputaram esta vaga ao longo da história, mas vamos combinar: Pol Pot era um endiabrado! Desde que assumiu o comando do temido Khmer Vermelho, o Partido Comunista do Camboja, ele não sossegou; organizou a luta armada em seu país e tomou o poder em 1975.
        A partir de então, o Camboja viveu um dos mais tristes experimentos de engenharia social já registrados. O Khmer Vermelho impôs uma utopia agrária e esvaziou as cidades cambojanas; fechou hospitais, templos religiosos e indústrias; controlou a mídia, os meios de produção e o sistema de educação. É claro que precisou prender, torturar e matar indiscriminadamente. Criou um medonho aparato de repressão para perseguir dissidentes, grupos religiosos e minorias étnicas; os jogou em centros de detenção desumanos, que dividiam espaço com campos de extermínio. 30% dos cambojanos foram eliminados – 1,5 milhão de almas.
        São esses os tristes fatos que vemos retratados no filme Os Gritos do Silêncio, dirigido em 1984 por Roland Joffé. Porém, este não é um filme de guerra; é um drama humano, que investiga a profunda conexão que se estabeleceu entre dois personagens diferentes, que viveram situações assustadoramente perigosas. O primeiro é Sydney Schanberg, jornalista americano correspondente do The New York Times, que fazia a cobertura da guerra no Camboja; foi um dos últimos americanos a permanecer trabalhando na capital Phnom Penh, depois que ela caiu em 1975. O outro personagem é seu assistente e tradutor, o fotojornalista Dith Pran; cidadão cambojano, ele não conseguiu sair do pais depois que os comunistas tomaram o poder; foi preso, passou por torturas e escapou dos campos de extermínio de forma dramática.
        Os Gritos do Silêncio está dividido em duas partes; na primeira, seguimos a trama pelos olhos de Schanberg (Sam Waterston). Quando os estrangeiros em Phnom Penh são evacuados, o jornalista americano consegue despachar a família de Dith Pran (Haing S. Ngor), mas o assistente insiste em ficar; quer continuar ajudando. Consegue livrar o americano de enrascadas, mas terminam encurralados na embaixada americana, cercados de furiosos guerrilheiros. Quando o cerco se fecha, todos os cidadãos cambojanos precisam ser entregues ao Khmer Vermelho. Bem que tentam falsificar um passaporte para Dith Pran, mas a manobra não funciona, por falta de um fixador fotográfico. A partir daí, entramos na segunda parte do filme, quando acompanhamos o sofrimento do cambojano e do seu povo subjugado.
        Uma das forças dramáticas de Os Gritos do Silêncio está na atuação de Haing S. Ngor, que recebeu o Óscar de melhor ator coadjuvante. Acontece que o cambojano não era ator; era um médico sem experiências diante das câmeras; havia passado pelos mesmos horrores vividos pelo personagem que interpretou. Perdeu 11 membros da família, mas conseguiu escapar do matadouro em que se transformou seu país. O diretor Roland Joffé justificou sua atuação convincente com um aforismo: o sujeito precisou ser um bom ator para sobreviver ao Khmer Vermelho! Em 1996, Ngor seria morto a tiros na frente de casa, em Los Angeles. Aparentemente, não foi assalto. Há quem aposte em retaliação dos comunistas.
        Grande parte da eloquência de Os Gritos do Silêncio se deve ao roteiro consistente escrito por Bruce Robinson. Ele se baseou no livro que o jornalista Sydney Schanberg publicou em 1980, intitulado A Morte e Vida de Dith Pran. O roteirista entrevistou os personagens, colheu depoimentos e se concentrou nas passagens verdadeiras. Curiosamente, a única invencionice que ousou foi o episódio envolvendo a tentativa de falsificar o passaporte de Dith Pran, o que não aconteceu de fato. Robinson criou a ação dramática em torno da imagem fotográfica que desaparece, para ampliar a escalada de tensão que só iria amentar. Funcionou!
        Em Os Gritos do Silêncio, o diretor Roland Joffé soube manter o estilo documental, mas sem desviar o foco dos personagens e seus dramas. O cineasta já tinha muita experiência no teatro e na TV e este foi seu primeiro longa – mais tarde ele também realizaria A Missão, outro comovente filme dos anos 1980, estrelado por Robert DeNiro. Aqui ele realizou um trabalho de muita qualidade técnica. Na contabilidade final do Óscar, a produção arrebatou ainda as estatuetas de melhor fotografia e melhor edição. Ah, o elenco ainda temos John Malkovich, Julian Sands e Craig T. Nelson. Vale a pena conferir!

Os Gritos do Silêncio

Título Original: The Killing Fields
Título em Portugal: Terra Sangrenta
Data de produção: 1984
Direção: Roland Joffé
Roteiro: Bruce Robinson
Elenco: Sam Waterston, Haing S. Ngor, John Malkovich, Julian Sands, Craig T. Nelson, Spalding Gray, Bill Paterson, Athol Fugard, Graham Kennedy, Patrick Malahide, Nell Campbell e Joanna Merlin

Comentários

  1. Realmente o cinema nos ensina escancarando a essência de muitos seres que se dizem "humanos ". Gostei desse filme porque realmente mostra com altissima qualidade uma realidade tão difícil de ver.

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    1. Sim, é difícil se deparar com tantas atrocidades. Ainda bem que os realizadores souberam extrair emoções verdadeiras ao contar essa história.

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  2. Grande filme, emocionante pela sua autencidade como denúncia do avanço fantoche dos chineses contrapondo o expansionismo capitalista americano na região. Os povos é que sofrem na briga ideológica que no fundo é nada mais que busca pelo poder econômico como estamos hoje notando cada vez mais. Guerra civil é isso...

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  3. Grande filme, emocionante pela sua autencidade como denúncia do avanço fantoche dos chineses contrapondo o expansionismo capitalista americano na região. Os povos é que sofrem na briga ideológica que no fundo é nada mais que busca pelo poder econômico como estamos hoje notando cada vez mais. Guerra civil é isso...

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    1. Sim, e o papel da imprensa revelando os fatos é sempre de suma importância.

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