Crash: No Limite: histórias cruzadas, temas espinhosos
Crash: No Limite: filme dirigido por Paul Haggis
É incrível como o fluxo do tempo se altera pela ação das nossas expectativas. Os poucos segundos de frenagem demoraram uma eternidade. Pude ver a expressão de espanto da velhinha, seus cabelos desgrenhados, a sacola plástica que ela carregava, sua blusa de lã marrom tricotada a mão (talvez por ela mesma)... Quando meu carro parou, esbarrou na infeliz; ela se desiquilibrou e se esparramou de peito sobre o capô; depois, escorregou para chão e sumiu do meu campo de visão. Saí do carro e a encontrei sentada no asfalto.
Primeiro, certifiquei-me de que ela estava bem. Sem escoriações, apenas reclamava de dores por causa da queda; então a coloquei no carro e a levei para o hospital de fraturas. É... Aquele era mesmo um dia raro! Perdi muitas horas com o registro da ocorrência; a ida até o IML para fazer o teste de dosagem alcoólica; passar na farmácia e comprar remédios para a Dona Inês – que descobri, já contava 86 anos – e depois levá-la até em casa. Lembro de tê-la entregado para os dois filhos – ambos bem mais velhos do que eu –, mas não sem antes dar-lhes uma bronca: onde já se viu deixar à solta uma senhora tão idosa e tão atrevida, a ponto de atravessar a via rápida num trecho sem faixa de pedestre. Façam-me o favor!
Quando retomei o caminho de casa, já estava mais calmo. O trânsito já fluía fácil e pus para tocar o CD de blues engatilhado no player. Ah, os dramas urbanos aos quais somos expostos... Fragmentos do meu dia se misturaram com as imagens dos carros, das ruas, e das pessoas que circulavam despreocupadas. Dobrei a atenção: vai que o inesperado teime em ser repetitivo – já bastava o azar de ter a minha vida cruzada com as de Dona Inês e seus dois filhos displicentes, que depois de tudo ainda exigiram que ela lhes preparasse o jantar. Percebi que numa cidade agitada, as vidas de todos se cruzam, numa maçaroca de surpresas e desgostos. Então, como cinéfilo meticuloso que sou, comecei a relembrar as várias sequências do filme Crash: No Limite, escrito e dirigido em 2005 por Paul Haggis.
Que filme inquietante! Conta várias histórias densas de emoção, vividas por pessoas desconectadas umas das outras, mas que se trombam ao sabor do acaso. Preconceito racial, xenofobia, tensão social, sexismo, machismo... Todos esses temas espinhosos borbulham num caldeirão chamado Los Angeles. De início, os personagens de Crash: No Limite estão preocupados apenas com seus dramas pessoais. Esquecem que, na vida real, as histórias se cruzam num emaranhado de coincidências; vêm embaralhadas numa trama incompreensível de causas e efeitos. Porém, na medida em que as ações e reações explodem na tela, o que eram apenas estereótipos se tornam retratos mais nítidos de pessoas de carne e osso. Ao misturar um punhado de histórias distintas, o diretor Paul Haggis costurou um roteiro primoroso; retratou algumas das muitas tensões que pairam sobre os habitantes de qualquer grande cidade.
– Ah, mas tanta coincidência, é forçar demais a barra! – vociferaram alguns espectadores, que enxergaram apenas as coincidências engendradas pelo roteirista. Essa artimanha narrativa, porém, é o que menos importa; apenas demonstra o virtuosismo de Haggis, que um ano antes já nos havia presenteado com o brilhante roteiro do filme Menina de Ouro, dirigido e estrelado por Clint Eastwood. O que consolida a força de Crash: No Limite é o fluxo de emoções que brota espontâneo dos seus personagens, enquanto tomam decisões pressionados por circunstâncias que não controlam – como acontece na vida real, não é mesmo?
Ao contar cada uma das histórias com concisão e objetividade, o diretor impõe um ritmo uniforme ao filme. A atmosfera parece fantasiosa, sempre no limite entre o real e o improvável, mas é isso que envolve o espectador. Conhecemos um promotor e sua mulher, um cineasta, um policial, um imigrante, uma mãe, um pai... Externamente, são todos definidos pela cor da pele, pelo gênero, pelo cargo, pelas crenças e pela conta bancária; porém, na medida em que agem e reagem, penetramos em seus mundos internos e encontramos novos atributos para defini-los – como acontece na vida real, não é mesmo?
As qualidades técnicas de Crash: No Limite são muitas; o filme conquistou três óscares: melhor filme, melhor roteiro original e melhor edição. Com um elenco excelente, que sabe aproveitar todas as oportunidades dramáticas, o filme nos faz pensar e fornece material emocional suficiente para gerar aprendizado. Cada espectador elege suas histórias preferidas e eventualmente deixa de lado aquelas que o incomodam.
No Brasil, o título do filme ganhou o apêndice No Limite, o que considero uma ótima escolha. Para os anglófonos, o termo crash tem um largo espectro de significados ligados aos conceitos de choque e conflito. Já o título Crash: No Limite sugere que os personagens são flagrados no momento limite entre o antes e o depois das suas tomadas de decisão. Temos, portanto, a oportunidade de assistir às suas transformações!
Meu encontro com Dona Inês foi transformador? Certamente que sim! Hoje sou um motorista bem mais atento. Quanto aos filhos dela, já não garanto. Há um detalhe revelador nessa história que deixei para o final: a sacola plástica que a velinha carregava continha... uma dúzia de ovos. Incrivelmente, nenhum deles se quebrou! Ela chegou em casa a tempo de preparar o jantar. Alimentou os filhos como se nada tivesse acontecido.Ano de produção: 2005
Direção: Paul Haggis
Roteiro: Paul Haggis
Elenco: Sandra Bullock, Don Cheadle, Matt Dillon, Ryan Phillippe, Chris "Ludacris" Bridges, Brendan Fraser, Michael Peña, Jennifer Esposito, Tony Danza, Thandie Newton, Daniel Dae Kim e Terrence Howard
A VIDA VEM EM UM EMARANHADO DE COINCIDÊNCIAS
Aquele era um dia raro; consegui bater o ponto às 17h e fui dirigindo para casa. Em questão de minutos, estava disputando espaço na via rápida, que me levaria da Cidade Industrial de Curitiba, onde trabalhava, até o Cabral, bairro onde moro até hoje. No meio do caminho, já resignado com a lentidão do tráfego, assumi uma das pistas como a definitiva (costurar de uma para outra é bobagem; só alimenta o estresse!). De repente, o motorista do ônibus que seguia à minha direita, pisou no freio. Meu instinto foi o de tirar o pé do acelerador, até entender o porquê. Foi minha sorte! Enxerguei uma velhinha escapando por um triz de ser atropelada pelo ônibus; numa fração de segundo a louca estava na minha pista; pisei no freio e senti o carro deslizar até ela.É incrível como o fluxo do tempo se altera pela ação das nossas expectativas. Os poucos segundos de frenagem demoraram uma eternidade. Pude ver a expressão de espanto da velhinha, seus cabelos desgrenhados, a sacola plástica que ela carregava, sua blusa de lã marrom tricotada a mão (talvez por ela mesma)... Quando meu carro parou, esbarrou na infeliz; ela se desiquilibrou e se esparramou de peito sobre o capô; depois, escorregou para chão e sumiu do meu campo de visão. Saí do carro e a encontrei sentada no asfalto.
Primeiro, certifiquei-me de que ela estava bem. Sem escoriações, apenas reclamava de dores por causa da queda; então a coloquei no carro e a levei para o hospital de fraturas. É... Aquele era mesmo um dia raro! Perdi muitas horas com o registro da ocorrência; a ida até o IML para fazer o teste de dosagem alcoólica; passar na farmácia e comprar remédios para a Dona Inês – que descobri, já contava 86 anos – e depois levá-la até em casa. Lembro de tê-la entregado para os dois filhos – ambos bem mais velhos do que eu –, mas não sem antes dar-lhes uma bronca: onde já se viu deixar à solta uma senhora tão idosa e tão atrevida, a ponto de atravessar a via rápida num trecho sem faixa de pedestre. Façam-me o favor!
Quando retomei o caminho de casa, já estava mais calmo. O trânsito já fluía fácil e pus para tocar o CD de blues engatilhado no player. Ah, os dramas urbanos aos quais somos expostos... Fragmentos do meu dia se misturaram com as imagens dos carros, das ruas, e das pessoas que circulavam despreocupadas. Dobrei a atenção: vai que o inesperado teime em ser repetitivo – já bastava o azar de ter a minha vida cruzada com as de Dona Inês e seus dois filhos displicentes, que depois de tudo ainda exigiram que ela lhes preparasse o jantar. Percebi que numa cidade agitada, as vidas de todos se cruzam, numa maçaroca de surpresas e desgostos. Então, como cinéfilo meticuloso que sou, comecei a relembrar as várias sequências do filme Crash: No Limite, escrito e dirigido em 2005 por Paul Haggis.
Que filme inquietante! Conta várias histórias densas de emoção, vividas por pessoas desconectadas umas das outras, mas que se trombam ao sabor do acaso. Preconceito racial, xenofobia, tensão social, sexismo, machismo... Todos esses temas espinhosos borbulham num caldeirão chamado Los Angeles. De início, os personagens de Crash: No Limite estão preocupados apenas com seus dramas pessoais. Esquecem que, na vida real, as histórias se cruzam num emaranhado de coincidências; vêm embaralhadas numa trama incompreensível de causas e efeitos. Porém, na medida em que as ações e reações explodem na tela, o que eram apenas estereótipos se tornam retratos mais nítidos de pessoas de carne e osso. Ao misturar um punhado de histórias distintas, o diretor Paul Haggis costurou um roteiro primoroso; retratou algumas das muitas tensões que pairam sobre os habitantes de qualquer grande cidade.
– Ah, mas tanta coincidência, é forçar demais a barra! – vociferaram alguns espectadores, que enxergaram apenas as coincidências engendradas pelo roteirista. Essa artimanha narrativa, porém, é o que menos importa; apenas demonstra o virtuosismo de Haggis, que um ano antes já nos havia presenteado com o brilhante roteiro do filme Menina de Ouro, dirigido e estrelado por Clint Eastwood. O que consolida a força de Crash: No Limite é o fluxo de emoções que brota espontâneo dos seus personagens, enquanto tomam decisões pressionados por circunstâncias que não controlam – como acontece na vida real, não é mesmo?
Ao contar cada uma das histórias com concisão e objetividade, o diretor impõe um ritmo uniforme ao filme. A atmosfera parece fantasiosa, sempre no limite entre o real e o improvável, mas é isso que envolve o espectador. Conhecemos um promotor e sua mulher, um cineasta, um policial, um imigrante, uma mãe, um pai... Externamente, são todos definidos pela cor da pele, pelo gênero, pelo cargo, pelas crenças e pela conta bancária; porém, na medida em que agem e reagem, penetramos em seus mundos internos e encontramos novos atributos para defini-los – como acontece na vida real, não é mesmo?
As qualidades técnicas de Crash: No Limite são muitas; o filme conquistou três óscares: melhor filme, melhor roteiro original e melhor edição. Com um elenco excelente, que sabe aproveitar todas as oportunidades dramáticas, o filme nos faz pensar e fornece material emocional suficiente para gerar aprendizado. Cada espectador elege suas histórias preferidas e eventualmente deixa de lado aquelas que o incomodam.
No Brasil, o título do filme ganhou o apêndice No Limite, o que considero uma ótima escolha. Para os anglófonos, o termo crash tem um largo espectro de significados ligados aos conceitos de choque e conflito. Já o título Crash: No Limite sugere que os personagens são flagrados no momento limite entre o antes e o depois das suas tomadas de decisão. Temos, portanto, a oportunidade de assistir às suas transformações!
Meu encontro com Dona Inês foi transformador? Certamente que sim! Hoje sou um motorista bem mais atento. Quanto aos filhos dela, já não garanto. Há um detalhe revelador nessa história que deixei para o final: a sacola plástica que a velinha carregava continha... uma dúzia de ovos. Incrivelmente, nenhum deles se quebrou! Ela chegou em casa a tempo de preparar o jantar. Alimentou os filhos como se nada tivesse acontecido.
Resenha crítica do filme Crash: No Limite
Direção: Paul Haggis
Roteiro: Paul Haggis
Elenco: Sandra Bullock, Don Cheadle, Matt Dillon, Ryan Phillippe, Chris "Ludacris" Bridges, Brendan Fraser, Michael Peña, Jennifer Esposito, Tony Danza, Thandie Newton, Daniel Dae Kim e Terrence Howard
Muito bom ! Amei!
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