O Mistério do Farol: a história real da ilha Flannan, só que não!

Cena do filme O Mistério do Farol
O Mistério do Farol: filme dirigido por Kristoffer Nyholm

UM THRILLER PSICOLÓGICO EMOCIONANTE, COM ÓTIMAS ATUAÇÕES

Há várias confusões em torno desse filme. Antes de começar a desfazê-las, é preciso que se diga: O Mistério do Farol, dirigido em 2019 por Kristoffer Nyholm, é um bom thriller psicológico. Trata-se de uma produção escocesa realizada com competência, que oferece bom entretenimento para os amantes do gênero.
        A primeira confusão sobre a produção envolve datas: para promovê-la, os realizadores dizem que foi baseada numa história real, conhecida de boca em boca como "O Mistério da Ilha de Flannan", sobre o desaparecimento de três faroleiros em circunstâncias jamais esclarecidas, enquanto cumpriam seu turno de seis semanas operando o farol. O fato aconteceu em 1894, naquela pequena ilha ao norte da Escócia, a 30 milhas da costa. Quando os homens da marinha vieram para rendê-los, a porta estava escancarada, a mesa posta para o jantar e uma das cadeiras estava deitada no chão. Não havia pistas nem qualquer sinal do que poderia ter acontecido. Mas no filme O Mistério do Farol, os acontecimentos se passam em 1938, quando as tecnologias de comunicação já estavam bem mais estabelecidas e teriam facilitado eventuais pedidos de ajuda. Ainda que os roteiristas tenham contornado essa questão, ela causa estranhamento para o espectador atento.
        A segunda confusão é mais óbvia: se os desaparecidos não deixaram pistas, como é que os roteiristas contaram essa “história real”? Ora, fica claro que se trata de pura especulação. Usaram e abusaram da licença poética – e fizeram isso com competência. Mas antes de continuar esse périplo, é mais prudente estabelecer uma rota segura, contando logo a sinopse do filme.
        Em O Mistério do Farol, Thomas Marshall (Peter Mullan) está no comando. É um homem maduro, em luto pela perda da mulher e das filhas. James Ducat (Gerard Butler), o faroleiro experiente, é um pai de família que só deseja cumprir seu turno e voltar logo para casa. E Donald McArthur (Connor Swindells), o mais jovem, é o aprendiz que precisa se conformar com a posição de subalterno. Depois de engrenar a rotina enfadonha e encarar uma tempestade que desagua em maus presságios, os três se deparam com um barco despedaçado no pé de um penhasco. Ao lado, um corpo e um baú de madeira. Pronto, está armado o cenário de mistério. É claro que o conteúdo do baú envolve ouro, em quantidade suficiente para despertar ganâncias e atrair bandidos desalmados que vêm reclamar sua posse. É claro que a vida dos três faroleiros passa a correr riscos, mas afinal, qual será o destino imaginado pelos roteiristas? É o que nos anima a seguir atentos até o final desse filme envolvente.
        Os cinéfilos mais experientes já ligaram os pontos e perceberam a inspiração no clássico O Tesouro de Sierra Madre, dirigido em 1948 por John Huston. Lá, o cenário era o México infestado de bandoleiros, que infernizaram a vida dos três protagonistas gananciosos. Mas aqui, os três faroleiros se envolvem numa batalha feroz pela sobrevivência, trazendo para O Mistério do Farol um resultado cinematográfico diferente.
        Outra confusão desse filme diz respeito ao seu título original. Quando a produção começou, era chamada de Keepers. Os realizados decidiram mudar para The Devil To Pay e depois de um tempo voltaram para Keepers – inclusive é assim que aparece nos créditos do filme exibido pela Netflix. Mas agora, o título oficial do filme é The Vanishing, o que gera ainda mais confusão, já que esse é o mesmo título de um clássico thriller holandês de 1988 dirigido por George Sluizer, 
que mais tarde ele mesmo refilmou em inglês e ficou conhecido por aqui como O Silêncio do Lago.
        Ainda tem mais confusão: a julgar pelo material promocional do filme, muitos espectadores estão pensando que o O Mistério do Farol é aquele dirigido em 2019 por Robert Eggers e estrelado por Willem Dafoe e Robert Pattinson. Nada disso! São histórias completamente diferentes – ouso dizer que o filme de Robert Eggers, intitulado O Farol, é bastante superior. Clique no link para conferir a crônica, onde detalho esse meu ponto de vista.
        Bem... Chega de confusão! O Mistério do Farol merece mais consideração. O diretor Kristoffer Nyholm é um cineasta experiente, com ótimas passagens pelas séries de TV. O diretor de fotografia, Jorgen Johansson, soube dar muita personalidade ao filme, explorando com talento os atrativos sombrios da locação, uma ilha escocesa eternamente coberta pela neblina. E o desempenho do trio de atores principais é excelente. O veterano Peter Mullan é pura credibilidade e o astro de filmes de ação de Hollywood, Gerard Butler, que é escocês de nascimento, surpreende: nos faz lembrar que dentro dele mora um ator de talento, com sólidos recursos dramáticos.
        Quanto ao roteiro de Joe Bone e Celyn Jones – esse último mais conhecido por seu trabalho como ator – é bem estruturado e consegue imprimir um andamento preciso para a narrativa. A dupla soube lidar com os momentos de silencio e também com as cenas de ação. Evitaram o apelo barato ao suspense ou terror e extraíram um caldo emocionante da história que inventaram. É bem verdade que precisaram improvisar. Os motores a diesel do farol, o aparato elétrico e a sirene de neblina disponíveis na locação – por contingências orçamentárias, é claro – os fizeram empurrar a história para os anos 1930. Mas como tinham uma boa história para contar, conseguiram contornar esses pequenos entraves. Os realizadores de O Mistério do Farol, no entanto, insistiram em manter o apelo promocional de ligar o filme ao mistério da Ilha de Flannan. Para os cinéfilos que apreciam uma boa história bem contada, isso não é exatamente um problema. Podemos incluir a decisão entre as tais... licenças poéticas!

Resenha crítica do filme O Mistério do Farol

Título original: The Vanishing
Ano de produção: 2019
Direção: Kristoffer Nyholm
Roteiro: Celyn Jones e Joe Bone
Elenco: Gerard Butler, Peter Mullan, Connor Swindells, Ólafur Darri Ólafsson, Søren Malling, Gary Lewis, Gary Kane, Roderick Gilkison e Emma King

Comentários

  1. Belíssimo texto. "Tira da cartola" todos coelhos do filme, desde a história real que o inspirou, que é impossível, pois não sobrou ninguém pra contar . Ressalta-se a imaginação dos autores montar uma obra apenas com boatos colhidos de boca em boca. Filmes assim me lembram outro de nome, "Uma luz entre oceanos", muito bom também com a bela Raquel Weiss. Graças a tua crônica irei colocar na minha lista pra assistir, aliás, tenho assistido muitos depois de ler aqui.....

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  2. Ah, obrigado! Sou grato pelo seu feedback. Fico feliz em poder compartilhar as experiências que me chegam pelo cinema.

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