A Salvação: faroeste dinamarquês sobre vingança e o preço que ela cobra

Cena do filme A Salvação
A Salvação: dirigido por Kristian Levring

A NATUREZA HUMANA BARRANDO O PROCESSO CIVILIZATÓRIO

Para falar de A Salvação, faroeste dirigido em 2014 por Kristian Levring, talvez seja mais prudente começar mencionando o Dogma95, movimento cinematográfico do qual o diretor foi integrante. Não que haja paralelos estéticos entre os cânones criados pelos cineastas da Dinamarca em 1995 e esse filme sombrio, inspirado em grandes clássicos de um gênero americano por excelência. O que salta aos olhos são justamente as diferenças! Era de se esperar que uma produção dinamarquesa, roteirizada por Anders Thomas Jensen – outro expoente do Dogma95 que dirigiu recentemente o filme Loucos por Justiça – seguisse os “votos de castidade” combinados entre ele, Lars von Trier, Thomas Vinterberg e Kristian Levring: nada de efeitos especiais tecnológicos, nada de se ater a um gênero específico, nada de se desviar dos valores fundamentais da história, nada de menosprezar a importância das atuações, nada de produtores e estúdios usurpando o poder criativo e tomando as decisões estéticas... O objetivo do movimento era o de purificar o cinema e devolver aos diretores a aura de artistas que deveriam ostentar com orgulho.
        É verdade que os cineastas do movimento Dogma95 nunca disseram que os tais “votos de castidade” seriam para sempre. Era só para desintoxicar! O importante é a liberdade criativa e a gana de fazer cinema de qualidade. E foi isso que Kristian Levring mostrou em A Salvação. Seu filme vem como uma homenagem ao western, contando uma história de vingança, carregada de violência e escrita em total conformidade com as convenções do gênero – personagens em busca de justiça, paisagens remotas e grandiloquentes, arremedos de civilização tentando mediar os embates entre indivíduos...
        Para quem considera o faroeste dinamarquês uma esquisitice ou excentricidade, o diretor lembra que o gênero possui elementos multiculturais suficientes para ganhar alcance universal. Na segunda metade do Século XIX, durante a conquista do oeste americano, metade das pessoas que circulavam por lá nem sequer falava inglês. Índios, mexicanos e imigrantes de toda a Europa infestavam as pradarias e deram pretexto para as histórias que fizeram a festa de diretores como John Ford, Sam Peckinpah, John Sturges, Clint Eastwood e Sergio Leone, por exemplo. E Levring vai além: lembra que os dinamarqueses não ficaram de fora. Foram inúmeros os que emigraram para a América e assumiram a nova nacionalidade como um caminho sem volta. A história que ele filmou fala de vingança, mas mostra que há um preço a ser pago pela matança que ela desencadeia. Vejamos uma sinopse de A Salvação:
        O filme conta como Jon (Mads Mikkelsen), um colono dinamarquês que se estabeleceu no Oeste, finalmente consegue trazer para a América sua mulher Marie (Nanna Øland Fabricius) e seu filho Kresten (Toke Lars Bjarke) de 10 anos. Eles chegam de trem apenas para embarcar numa diligência e serem brutalmente assassinados por dois criminosos recém-saídos da prisão. Jon mata os assassinos, mas arde em dor pela perda lacerante – tudo isso na sequência inicial do filme. Acontece que um dos bandidos mortos por Jon é irmão do Coronel Delarue (Jeffrey Dean Morgan), barão de terras que lidera uma numerosa gangue de foras-da-lei. Para complicar, o bandido também deixou uma viúva, a muda Madelaine (Eva Green), cuja sede de vingança é gigantesca. Jon terá que enfrentar a fúria insana dessa dupla violenta e a conivência de uma cidade acovardada, manipulada pelo prefeito Keane (Jonathan Pryce). A seu lado, terá apenas a lealdade do irmão Peter (Mikael Persbrandt), a sua habilidade com as armas e a certeza de que já não tem mais nada a perder.
        Partindo desse enredo verossímil e envolvente, Anders Thomas Jensen e Kristian Levring escreveram um roteiro lacônico, com pouquíssimos diálogos e muita ação, como é praxe nos clássicos do faroeste. Sem a necessidade de estabelecer cenas expositivas, o diretor se esbaldou no visual arrojado, ora explorando o imperativo da paisagem, ora enquadrando os rostos expressivos que enriqueceram seu elenco. É claro que o destaque vai para Mads Mikkelsen, um ator impressionante, que consegue ser dinamarquês sem perder as feições de caubói americano – ou vice-versa! Mas Eva Green, sem falar uma palavra, também conseguiu construir uma personagem poderosa.
        Filmado na África do Sul, por uma trupe liderada por dinamarqueses, A Salvação parece renegar os princípios do Dogma95. As locações não são reais, a iluminação é artificial, os planos são bem estudados, as movimentações de câmera são calculadas... Mas há muita verdade em cena. Kristian Levring realizou um filme sombrio, despreocupado com as camadas psicológicas dos seus personagens. Ficou ao nível das emoções primárias, pois a história que nos conta é sobre a vingança. Martelando o tema, ele aproveita para nos mostrar o lado tenebroso da natureza humana e a dificuldade que isso impõe ao processo civilizatório. Eis aqui um filme que vale a pena conferir!

Resenha crítica do filme A Salvação

Título original: The Salvation
Ano de produção: 2014
Direção: Kristian Levring
Roteiro: Anders Thomas Jensen e Kristian Levring
Elenco: Mads Mikkelsen, Eva Green, Jeffrey Dean Morgan, Eric Cantona, Mikael Persbrandt, Douglas Henshall, Michael Raymond-James, Jonathan Pryce, Alex Arnold, Nanna Øland Fabricius, Toke Lars Bjarke, Sean Cameron Michael, Carl Nel, Sivan Raphaely, Grant Swanby, Robert Hobbs, Adam Neill e Langley Kirkwood

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