A Doce Vida: um marco do cinema mundial

Cena do filme A Doce Vida
A Doce Vida: filme de Federico Fellini

UMA NOVA MANEIRA DE CONTAR HISTÓRIAS

Quando nasci, em novembro de 1960, A Doce Vida já era um mito. Ganhou a Palma de Ouro em Cannes e acabou com o prolongado jejum dos italianos. Tornou velho todo o cinema que havia antes dessa obra-prima de Federico Fellini. Nasci, portanto, do lado de cá da fronteira da modernidade. Só assisti ao filme no final dos anos 1970, quando foi exibido na TV. Diante da telinha analógica, embaçada e chuviscada, este cinéfilo adolescente sentiu-se tapeado:
        – Que raio de modernidade é essa, que vem em preto e branco e traz uma trilha sonora composta para agradar aos meus pais?
        Só vi a pergunta respondida anos mais tarde, quando já era dono de um aparelho de videocassete e trazia na bagagem alguma noção sobre o cinema e sobre os filmes. A verdade é que A Doce Vida apresentou ao mundo uma nova forma de contar histórias; inovou as técnicas narrativas cinematográficas, na medida em que renegou a continuidade, suprimiu as cenas expositivas e obrigou o espectador a procurar outra lógica além daquela governada pelas leis da causa e efeito. Fellini abandonou os cânones do enredo tradicional e não deu a mínima para as convenções que costumavam orientar os contadores de história na hora de caracterizar seus personagens.
        Ao valer-se principalmente de imagens e simbolismos, A Doce Vida trouxe de arrasto uma carreta de polêmicas e provocou a ira de católicos e conservadores da Itália e do mundo. Veio como uma crítica ácida à sociedade da época, cuja aristocracia hedonista, fútil e superficial, disseminava um estilo de vida consumista e ancorado no culto às celebridades – ainda exala modernidade! Suas imagens em preto e branco exploravam o contraste entre luz e sombra; na luz do dia, ressaltavam o clima festivo dos dias preguiçosos; nas sequências noturnas, sombrias, resgatavam as angústias do cinema noir. Enfim, impuseram uma personalidade jornalística ao filme – herança de um diretor que construiu uma carreira na imprensa!
        Trata-se de um dos filmes mais importantes do Século XX; uma obra que não veio à luz para acenar com denúncias, defender causas ou vomitar conclusões. Veio apenas para incomodar! Junto com os roteiristas Tullio Pinelli, Ennio Faliano, Brunello Rondi e Pier Paolo Pasolini (em colaboração não creditada), Fellini trabalhou durante todo o ano de 1958 para estruturar a narrativa. Partiu de um antigo roteiro de sua autoria, sobre um jornalista provinciano que chega a Roma e se encanta com a vida vibrante e pulsante de erotismo; o protagonista experimenta alienação e tédio, enquanto se embriaga com as misturas de velho e novo, sagrado e profano, bairrismos e estrangeirismos... O roteiro, contudo, não empolgou o produtor Dino De Laurentiis, que o achou confuso e nada comercial. Mas antes de continuar o assunto, creio que é hora de falar da sinopse:
        A Doce Vida mostra um recorte na vida de Marcello Rubini (Marcello Mastroianni), um jornalista com faro para as histórias sensacionalistas e para as fofocas da alta sociedade; ele se dedica a cobrir o universo das estrelas de cinema e transita com desenvoltura por uma Roma moderna e sofisticada. Envolve-se em aventuras sexuais com a ricaça Maddalena (Anouk Aimée), socorre a amante Emma (Yvonne Furneaux) durante uma crise depressiva e é destacado para cobrir a visita de Sylvia Rank (Anita Ekberg), uma estrela de Hollywood. Ao conduzi-la pelos principais pontos turísticos de Roma e sua fervilhante vida noturna, o jornalista se encanta com o glamour em que está metido, mas acaba colhido por um turbilhão emocional quando seu colega Steiner (Alain Cuny), um intelectual atormentado, comete um crime bárbaro e se mata. Angustiado, Marcelo se dedica a uma sequência de orgias; busca formas de preencher seu vazio existencial e derrotar seus monstros internos.
        A Doce Vida se tornou um dos filmes mais longos até então produzidos na Itália. Os roteirista dividiram o enredo em 104 cenas separadas, ordenadas em um prólogo, sete episódios, um intermezzo e um epílogo. Fellini, todavia, jamais se preocupou em ser fiel àquilo que estava registrado no papel; para ele, o roteiro era apenas um ponto de partida; acreditava que a personalidade de um filme só existe de verdade na tela. Para nós, cinéfilos curiosos, examinar o roteiro pode ser um exercício profícuo, capaz de ajudar a entender o processo criativo do diretor. Quem tiver paciência, que se arrisque!
        As filmagens de A Doce Vida foram conturbadas. Se estenderam por várias semanas além do cronograma e consumiram mais recursos do que o previsto no orçamento. Para complicar, Dino De Laurentiis abandonou o projeto, por sérias divergências com o diretor. Queria Paul Newman no papel do protagonista e pretendia escalar várias outras estrelas internacionais. Fellini não abriu mão de Marcello Mastroianni e sua teimosia terminou por consagrar o ator, que se tornou uma celebridade mundial e um ícone do cinema italiano. Com a saída de Dino De Laurentiis, os produtores Giuseppe Amato e Angelo Rizzoli abraçaram a causa, cientes de que tomariam parte numa verdadeira revolução do cinema.
        A Doce Vida tem música de Nino Rota e fotografia de Otello Martelli. Marca o término de Fellini com a estética neorrealista e o início de uma nova fase, mais apegada ao simbolismo. É uma obra incômoda, que continua... moderna. E quando assistimos ao fotógrafo Paparazzo na perseguição de celebridades, com determinação canina, percebemos que o filme continua... pertinente.

Resenha crítica do filme A Doce Vida

Ano de produção: 1960
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli e Brunello Rondi
Elenco: Marcello Mastroianni, Anita Ekberg, Anouk Aimée, Yvonne Furneaux, Magali Noël, Alain Cuny, Lex Barker, Annibale Ninchi, Walter Santesso, Valeria Ciangottini, Riccardo Garrone, Ida Galli, Audrey McDonald e Alain Dijon

Leia também as crônicas sobre outros filmes dirigidos por Federico Fellini:

Comentários

  1. Retrato da superficialidade moderna
    Ótima película, sempre revejo
    Anita, uma atriz subestimada por Hollywood, merecia papéis a sua altura. Afinal, ela não teve pistoloes como Sofia loren e Cláudia cardinale...

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  2. É o cinema no seu apogeu, Roma nunca mais foi a mesma depois desse filme.

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