A Doce Vida: um marco do cinema mundial

Cena do filme A Doce Vida
A Doce Vida: filme de Federico Fellini

UMA NOVA MANEIRA DE CONTAR HISTÓRIAS

Quando nasci, no final de 1960, A Doce Vida já era um mito. Havia ganho a Palma de Ouro em Cannes, acabando com o prolongado jejum dos italianos e tornando velho todo o cinema que havia antes dessa obra-prima de Federico Fellini. Nasci, portanto, do lado de cá da fronteira da modernidade. Só assisti ao filme no final dos anos 1970, quando foi exibido na TV aberta – na época ninguém aqui no Brasil conhecia alguma "TV fechada"! Diante da telinha analógica embaçada e chuviscada, este adolescente sentiu-se obrigado a perguntar:
        – Mas que raio de modernidade é essa, que vem em preto e branco, com uma trilha sonora bem ao gosto dos meus pais?
        Só vi a pergunta respondida anos mais tarde, quando já era dono de um aparelho de videocassete e trazia na bagagem alguma noção sobre o cinema e sobre os filmes. A Doce Vida apresentou ao mundo uma nova forma de contar histórias, inovando as técnicas narrativas cinematográficas, na medida em que renegava a continuidade e suprimia as cenas expositivas, obrigando o espectador a procurar outra lógica além daquela governada pelas leis da causa e efeito. Fellini abandonou os cânones do enredo tradicional e não deu a mínima para as convenções que costumavam orientar os contadores de história na hora da caracterização dos personagens.
        Valendo-se principalmente de imagens e simbolismos, A Doce Vida trouxe de arrasto uma carreta de polêmicas e provocou a ira de católicos e conservadores da Itália e do mundo. Veio como uma crítica ácida à sociedade da época, cuja aristocracia hedonista, fútil e superficial, disseminava um estilo de vida consumista e ancorado no culto às celebridades – ainda exala modernidade! Suas imagens em branco e preto exploravam os contrastes entre luz e sombra, para ressaltar o clima festivo dos dias preguiçosos. Chegavam intercaladas com sequências noturnas sombrias, para flertar com as angústias do cinema noir. Revelavam a personalidade jornalística do filme – e do seu diretor!
        Estamos falando de um dos filmes mais importantes do Século XX. Uma obra que não veio à luz para acenar com denúncias, defender causas ou vomitar conclusões. Veio apenas para incomodar. Junto com os roteiristas Tullio Pinelli, Ennio Faliano e Brunello Rondi, Fellini trabalhou durante todo o ano de 1958 para costurar seu filme, partindo de um roteiro anterior, que havia abandonado. Era uma velha ideia sobre um jornalista provinciano que chega a Roma e se encanta com a vida vibrante e próspera, pulsante de erotismo, alienação e tédio, enquanto se embriaga com misturas de velho e novo, sagrado e profano e bairrismos e estrangeirismos. Nessa empreitada, o cineasta também contou com a colaboração não creditada de seu amigo Pier Paolo Pasolini, chegando a um roteiro que não empolgou de imediato o produtor Dino De Laurentiis – o achou confuso e nada comercial. Mas antes de continuar, creio que é hora de falar da sinopse:
        A Doce Vida mostra um recorte na vida de Marcello Rubini (Marcello Mastroianni), um jornalista com faro para as histórias sensacionalistas e para as fofocas da alta sociedade, que se dedica a cobrir o universo das estrelas de cinema. Ele transita com desenvoltura por uma Roma moderna e sofisticada. Envolve-se em aventuras sexuais com a ricaça Maddalena (Anouk Aimée), socorre a amante Emma (Yvonne Furneaux), que passa por uma crise depressiva e é destacado para cobrir a visita de Sylvia Rank (Anita Ekberg), uma estrela de Hollywood. Ao conduzi-la pelos principais pontos turísticos de Roma e sua fervilhante vida noturna, o jornalista se encanta com o glamour em que está metido, mas acaba colhido por um turbilhão emocional quando seu colega Steiner (Alain Cuny), um intelectual atormentado, comete um crime bárbaro e se mata. Angustiado, Marcelo se dedica a uma vida de orgias, buscando formas de preencher seu vazio existencial e derrotar seus monstros internos.
        A Doce Vida se tornou um dos filmes mais longos até então produzidos na Itália, mas seu roteiro não fez mais do que dividir o enredo em 104 cenas separadas, ordenadas em um prólogo, sete episódios, um intermezzo e um epílogo. Mas o fato é que Fellini, como sempre, não se preocupou em ser fiel ao papel, que nunca passa de um ponto de partida. Para ele, a personalidade de um filme só existe na tela. Mas para o cinéfilo curioso, examinar o roteiro pode ser um exercício profícuo, capaz de ajudar a entender o processo criativo do diretor.
        As filmagens de A Doce Vida foram conturbadas. Se estenderam por várias semanas além do cronograma e consumiram mais recursos do que o previsto no orçamento. Além disso, Dino De Laurentiis abandonou o projeto, por sérias divergências com o diretor. Queria Paul Newman interpretando o protagonista, além de escalar várias outras estrelas internacionais. Fellini não abriu mão de Marcello Mastroianni e terminou por consagrar o ator, que se tornou uma celebridade mundial e um ícone do cinema italiano. Os produtores Giuseppe Amato e Angelo Rizzoli abraçaram a causa, cientes de que estavam tomando parte de um verdadeiro marco do cinema.
        A Doce Vida tem música de Nino Rota e fotografia de Otello Martelli. Marca o término de Fellini com a estética neorrealista e o início de uma nova fase, mais apegada ao simbolismo. É uma obra incômoda, que continua... moderna. E quando assistimos ao fotógrafo Paparazzo, perseguindo celebridades com determinação canina, percebemos que o filme continua... pertinente.

Resenha crítica do filme A Doce Vida

Ano de produção: 1960
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tullio Pinelli, Brunello Rondi e Pier Paolo Pasolini
Elenco: Marcello Mastroianni, Anita Ekberg, Anouk Aimée, Yvonne Furneaux, Magali Noël, Alain Cuny, Lex Barker, Annibale Ninchi, Walter Santesso, Valeria Ciangottini, Riccardo Garrone, Ida Galli, Audrey McDonald e Alain Dijon

Leia também as crônicas sobre outros filmes dirigidos por Federico Fellini:

Comentários

  1. Retrato da superficialidade moderna
    Ótima película, sempre revejo
    Anita, uma atriz subestimada por Hollywood, merecia papéis a sua altura. Afinal, ela não teve pistoloes como Sofia loren e Cláudia cardinale...

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  2. É o cinema no seu apogeu, Roma nunca mais foi a mesma depois desse filme.

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