Sonata de Outono: mãe e filha lavando a roupa suja

Cena do filme Sonata de Outono
Sonata de Outono: filme de Ingmar Bergman

QUANTO ESTRAGO PODE CAUSAR UMA MÃE AUSENTE?

Qual é o pior tipo de vilão que um contador de histórias é capaz de conceber? Um assassino psicopata, frio e focado? Um monstro dissimulado e matreiro, que se alimenta de medo? Um predador desalmado, infalível e sedutor? Não! Certamente é uma mãe egoísta e displicente, negligente às carências de sua cria. Uma mãe que se vale da autoridade materna apenas para se auto-afirmar. Que exerce o abandono com despudorado prazer. Que se nega a nutrir. Que se apressa em desmamar – ou antes disso, sonega seu leite!
        Uma mãe como vilã é a certeza de cutucar a audiência com tachinhas na poltrona, provocando o mais inquietante dos desconfortos. É abrir as portas para alguns aposentos da alma humana, que muitos de nós não estão preparados para frequentar. É se enredar por um emaranhado de emoções complexas.
        Qual cineasta poderia tramar tamanha ousadia com a máxima propriedade e competência? Ingmar Bergman, certamente. Em Sonata de Outono, seu filme de 1978, ele nos apresenta um retrato em close-up de um relacionamento tenso, entre uma mãe egoísta e sua filha ressentida. Trata-se de uma produção compenetrada, que combina abordagem psicológica com o virtuosismo no uso da linguagem teatral – como é praxe do diretor!
        Para começar a falar desse filme, nada mais apropriado do que iniciar pelo título: Sonata de Outono. O leitor logo perceberá que a música tende a ganhar substância ao longo da narrativa, possibilitando variadas analogias entre o fazer musical e o próprio fazer cinematográfico. O filme se desenvolve como uma composição precisa, registrada em partitura, executada por dois instrumentos que se revezam e se complementam – ou se imiscuem e se rivalizam – enquanto passeiam pelas tonalidades. Ingrid Bergman e Liv Ullmann são os instrumentos. Ingmar Bergman o compositor.
        Sonata de Outono conta a história de Eva (Liv Ullmann), que há sete anos não vê sua mãe, Charlotte (Ingrid Bergman), uma famosa pianista, dedicada ao circuito internacional da música erudita. Eva convida a mãe para visitá-la e o que vemos é sua chegada imponente – veste um traje elegantíssimo e deixa que a filha carregue suas malas para dentro de casa. O marido de Eva, Viktor (Halvar Björk), é um ministro religioso. Eva também cuida de sua irmã, Helena (Lena Nyman), que está morrendo lentamente de uma doença degenerativa. A presença de Charlotte, portanto, altera a rotina da casa. Na medida em que as linhas de diálogo vão sendo interpretadas, começamos a compreender o passado das protagonistas e percebemos que ambas trazem quilos de roupa suja para lavar. Charlotte é uma mãe ausente, que se choca com a presença de Helena na casa de Eva. Eva nutre pela mãe uma raiva sem tamanho e a culpa pelo sentimento de abandono que a domina. O que esperamos é que mãe e filha façam algum esforço na direção do encontro e ajustem seu relacionamento. Antes, porém, seguiremos vendo um inevitável confronto, de proporções devastadoras.
        Em filmes marcantes, como O Sétimo Selo e Gritos e Sussurros, Ingmar Bergman instigou seu público a sondar as profundezas da alma humana. Em Sonata de Outono, temas como solidão e vazio existencial parecem dar lugar ao sentimento de abandono e à saudade. A referência ao outono, estação que anuncia a inevitável chegada do inverno e ressalta a índole introspectiva dos nórdicos, enche o filme de melancolia, mas também de uma certa esperança de que ela seja passageira. O diretor aproveita para tingir a tela com uma paleta esmaecida e dominada por um cinza sombrio, mas permite que algumas flores coloridas insistam em resistir. Seus cenários, como sempre, são apertados e claustrofóbicos e seus enquadramentos nos colocam mais próximos aos personagens do que gostaríamos inicialmente.
        Sonata de Outono foi filmado na Noruega, durante o período de auto-exílio ao qual o diretor se submeteu, depois de ter sido preso por evasão fiscal na Suécia. No ano anterior ele já havia filmado O Ovo da Serpente, que ficou distante do que podemos considerar um sucesso comercial. Para esse novo filme, Bergman criou o enredo em uma única noite e depois construiu o roteiro baseado inteiramente em cenas expositivas. É por meio dos diálogos, repletos de acusações de lado a lado e revelações surpreendentes, que vamos descobrindo a profundidade do drama em que estamos mergulhando.
        Este filme traz todos os elementos que esperamos da grife Bergman. Visual apurado, teatralidade empregada com virtuosismo e trilha sonora pertinente – as músicas envolventes de Frédéric Chopin são um deletei! Mas para Sonata de Outono, o diretor trouxe muito mais do que a sua técnica cinematográfica. Trouxe seus fantasmas internos. Como cineasta obcecado, que sempre colocou sua arte acima da própria família, imagino que Ingmar Bergman também devia estar buscando dialogar com seus próprios filhos. Quem sabe?

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Escrever para a Crônica de Cinema tem me rendido algumas experiências gratificantes. A maioria delas vem como resultado dos comentários de seguidores – cinéfilos como eu – que têm a generosidade de compartilhar suas impressões e conhecimentos. Alguns preferem comentar aqui no blog, outros preferem as redes sociais. É o caso de Jane Chiesse Zandonadi, que trouxe detalhes importantes para complementar minha crônica. Faço questão de reproduzir seu comentário aqui:

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Ah!!... Lá vamos nós!... Em primeiro lugar, adorei esta sua crônica tão informativa, principalmente quanto aos meandros emocionais e seu espelhamento no cenário e nas cores. Coloquei este filme lá no grupo Música & Cinema com o vídeo de mãe e filha ao piano tocando o Prelúdio n.2 do Chopin, certamente seu prelúdio mais estranho, mas a pianista nos dá uma lição de Chopin e os sentimentos “estampados” dentro da linha melódica do prelúdio.
        Claro que não fui tão detalhista lá, como você o foi aqui. Mas há um detalhe neste filme que pouca gente prestou atenção. Ingrid Bergman, sueca, foi para sua brilhante carreira cinematográfica nos States. logo após seu último filme antes de partir, falado em sueco, chamado "Interlúdio", filme com mesmo nome que foi reproduzido em Hollywood com ela já falando em Inglês. Neste filme ela é uma pianista em início de carreira.
        Pois "Sonata de Outono" trata de sua volta ao idioma natal e é seu último filme falado em sueco, retratando uma pianista quase em fim de carreira. Parece ser a mesma personagem! Coincidência? Claro que não. Bergman fez alguns filmes assim, revisitando histórias 30 anos depois, como em "Cenas de Um Casamento" e seu seguimento, "Sarabanda".
        A cena de Liv olhando para a mãe ao piano é dilacerante, principalmente para mim, que assisti a primeira vez no cinemão. A atriz que faz a irmã doente é maravilhosa. Dá para acreditar direitinho em sua doença. Por fim, é um filme que todos os cinéfilos deveriam ver. Mais uma vez coloco a frase do jornalista Paulo Francis: "Se os jovens assistissem pelo menos a um filme do Bergman, estariam salvos".
        É isso. Obrigada.
        Jane Chiesse Zandonadi



Resenha crítica do filme Sonata de outono
Ano de produção: 1978
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Ingrid Bergman, Liv Ullmann, Lena Nyman, Halvar Björk, Marianne Aminoff, Arne Bang-Hansen, Gunnar Björnstrand, Erland Josephson, Georg Løkkeberg, Mimi Pollak e Linn Ullmann

Comentários

  1. Excelente crônica! Vi há muitos anos este filme. Eu me lembro da frase da filha : pessoas como você deveriam estar presas preciso ver de novo.

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  2. Ah, muito obrigado. É um filme que surpreende a cada vez que é revisitado!

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  3. Liv Ullmann na mais bela interpretação do cinema

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