Eu, Christiane F. - 13 Anos, Drogada e Prostituída: filme de 1981

Cena do filme Eu, Christiane F. - 13 Anos, Drogada e Prostituída
Eu, Christiane F. - 13 Anos, Drogada e Prostituída: direção de Ulrich Edel

CONTUNDENTE, DIDÁTICO, REALISTA E ATUAL

Neste fim de semana, Ludy e eu vivemos uma experiência de cinema um tanto peculiar. Assistimos a dois filmes protagonizados por meninas, um completamente diferente do outro. No entanto, encontramos neles uma conexão surpreendente: ambos falam de família, só que um nasceu pela falta dela e o outro, por causa dela. No primeiro, a família é uma abstração tão desfocada, que em momento algum lembramos dela. No segundo, a concretude da família é tão nítida, que não há como esquecer dela em nenhuma cena. O primeiro filme é Eu, Christiane F. - 13 Anos, Drogada e Prostituída, dirigido em 1981 por Ulrich Edel. O segundo é Destemida, dirigido em 2022 por Sarah Spillane.
        Pensei em desenvolver uma única crônica falando dos dois filmes, mas logo percebi que seria impossível. Primeiro, porque exigiria muitos parágrafos além do usual. Depois, porque fugiria ao padrão da Crônica de Cinema, onde o título sempre se refere a um único filme, para que o leitor possa localizar o texto com facilidade. A solução foi manter as duas crônicas separadas, mas tentando desenvolver a temática da família e seus desdobramentos em cada filme.
        Eu, Christiane F. - 13 Anos, Drogada e Prostituída foi realizado há mais de 40 anos. É um filme contundente e permanece chocante até mesmo nesses nossos dias... lisérgicos! Filmado com um realismo desconcertante, revelou ao mundo a triste cena berlinense no final dos anos 1970, quando a juventude vulnerável sucumbiu ao surgimento da heroína. A tal Christiane F. do título é uma personagem real – seu sobrenome é Felscherinow. Aos 13 anos, ela viveu tintim por tintim tudo aquilo que é narrado no filme. Sua história acabou nos ouvidos dos jornalistas Kai Hermann e Horst Rieck, que escreveram o livro intitulado Wir Kinder vom Bahnhof Zoo – numa tradução livre, algo como Nós, Crianças do Bahnhof Zoo. O produtor Bernd Eichinger decidido a realizar uma adaptação para o cinema, convocou o roteirista Herman Weigel, que se baseou no livro, mas omitiu toda a parte inicial, onde o histórico familiar de Christiane é narrado. O roteirista também deixou a parte final de fora, que revela o que de fato aconteceu com a protagonista. Vamos à sinopse:
        O filme conta como Christiane F. (Natja Brunckhorst), depois que sua irmã mais nova foi morar com o pai e a deixou num minúsculo apartamento com a mãe ausente, descobriu a vida noturna na Sound, uma boate no centro de Berlim. Lá ela conhece Detlev (Thomas Haustein), que logo vira seu namorado. Passa a conviver também com um bando de outros garotos que se divertem bebendo, fumando e usando drogas. No começo as drogas são “leves”, como maconha e LSD. Então aparece a heroína. Em pouco tempo ela passa a se injetar. Em pouco tempo está precisando de três picos diários. Em pouco tempo começa a se prostituir na estação de Bahnhof Zoo para conseguir dinheiro. Em pouco tempo já não encontra saída e percebe que acabará como as outras crianças da sua idade, que vão perdendo a vida para a imundice que os cerca.
        O diretor Ulrich Edel ingressou no projeto, interviu no roteiro e impôs sua visão pessoal. Filmou nas ruas, em locações reais, utilizando um elenco de atores iniciantes, sem experiência na frente das câmeras. Recusou-se a recrutar para o papel principal uma atriz de 26 anos, conforme estava planejado. Ao invés disso, convocou Natja Brunckhorst, que tinha na época 13 anos e alguma experiência como atriz. Muitos dos figurantes que aparecem ao fundo, nas cenas de rua, são viciados reais, ainda que nenhum drogado tenha atuado no filme – à exceção de Catherine Schabeck, então com 18 anos, que era amiga de Christiane Felscherinow e faz uma ponta como traficante.
        A estética realista de Ulrich Edel se mantém incrivelmente atual! A câmera na mão em constante perseguição do elenco, os planos noturnos de uma Berlim suja e deprimente, a participação de um David Bowie magnético, as cores com temperaturas similares às captadas pelas câmeras digitais... O filme parece ter sido feito em 2023! Estou exagerando? Talvez, mas é porque Eu, Christiane F. - 13 Anos, Drogada e Prostituída traz uma temática tão pesada que provocou em mim esse tipo de reação passional. Minha mulher, aliás, sentiu o mesmo – ela também custou a dormir com a imagem da pobre e indefesa criança de apenas 13 anos jogada às bestas-feras.
        Bem, caro leitor, para continuar minha narrativa, será necessário ir direto para o final do filme. Então, fica aqui o meu alerta de spoiler! Antes dos créditos finais, os realizadores entram com um testemunho em primeira pessoa de Christiane F., onde ela, depois de tentar uma overdose, afirma que conseguiu se livrar das drogas, já que sua mãe a levou para morar em Hamburgo. É um final otimista, que insinua um encontro com os valores familiares. Porém, isso não aconteceu na realidade. Ela jamais se livrou do vício! Em 1983 foi presa por envolvimento com traficantes. Tentou tratamentos com medicações e sessões de terapia, mas sem sucesso. Chegou a tentar a carreira musical, depois da enorme projeção mundial do livro e do filme, mas não decolou. Teve um filho, que acabou indo parar numa instituição para menores. Em 2008 Christiane voltou a usar drogas pesadas e em 2016 lançou um novo livro, intitulado Eu, Christiane F. – A Vida Apesar de Tudo, escrito com a ajuda da jornalista Sonja Vukovic, onde narra a sequência da sua triste história.
        Para que a trajetória de Christiane Felscherinow tomasse outra direção, bastaria que ela tivesse experimentado o acolhimento de uma família de verdade. Mas não! Tudo o que ela conheceu foram arremedos de pai e mãe, ele um agressor contumaz e ela uma pessoa indiferente à própria filha. Não se importaram em separá-la da irmã e abandoná-la na companhia do medo. Mas talvez, o pior tenha acontecido quando Christiane Felscherinow olhou em volta e percebeu, pelo comportamento de todos os que a cercavam, que essa ausência de família é uma regra. Detlev, Axel, Leiche, Bernd, Babsi, Kessi, Stella... Nenhuma das crianças que conhecemos nesse filme tem família. Estão sozinhas. Por conta própria.
        Não, caro leitor! A ausência de família não é regra. É exceção! Prova disso é que ainda estamos aqui, vivendo uma experiência civilizatória. Aos trancos e barrancos, é verdade, mas ainda temos na família o núcleo básico da nossa organização social e da nossa formação individual. Se não fosse assim, já teríamos sucumbido ao coletivismo, que tenta nos impor a ditadura da impessoalidade.
        Ludy e eu nos lembramos desse fato quando assistimos, no dia seguinte, ao filme Destemida. Ele também nos conta a história de uma menina, igualmente linda e sensível, mas protagonista de uma história diferente. Como se fosse uma anti-Christiane F., a jovem Jessica Watson se tornou, aos 16 anos, a pessoa mais jovem a circum-navegar o planeta sozinha, a bordo de um veleiro. Uma vitória que ela conquistou por causa da força que recebeu da sua família.

        Esse será o tema da minha próxima crônica!

Resenha crítica do filme Eu, Christiane F. - 13 Anos, Drogada e Prostituída

Título original: Christiane F. – Wir Kinder vom Bahnhof Zoo
Ano de produção: 1981
Direção: Ulrich Edel
Roteiro: Herman Weigel e Ulrich Edel
Elenco: Natja Brunckhorst, Thomas Haustein, Jens Kuphal, Rainer Wölk, Jan Georg Effler, Christiane Reichelt, Daniela Jaeger, Kerstin Richter, David Bowie e Christiane Lechle

Comentários

  1. Assisti esse filme há muitos anos. Lembro que já saí do cinema, deprimida. Sua crônica me instigou a assistí-lo novamente e acrescentou muitas informações que eu não tinha. Concordo totalmente que a falta da familia deu o tom do filme e da realidade da Christiane.

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    1. É uma história difícil de revisitar, mas continua funcionando muito bem, enquanto tema de alta relevância e enquanto cinema de qualidade.

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  2. Parabéns pela sua crônica. Você soube tocar num assunto pesado sem sucumbir a crueza do assunto que trata o filme. Vivemos essa tragédia no Brasil e no mundo exatamente pela falta da familia. Simples assim.

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  3. Assisti a esse filme na escola, quando era criança. Fiquei fascinada! Anos depois, comprei o livro. A ausência da família, e o fato de só perceberem que algo estava errado com Christiane quando ela já estava no fundo do poço, é chocante. Triste saber que é a realidade de muitas crianças.

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    1. Lembro de ter me impressionado com essa história ainda jovem. Assisti ao filme recentemente e o impacto foi o mesmo.

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