THX 1138: a desumanidade dos delírios coletivistas

Cena do filme THX 1138
THX 1128: direção de George Lucas

CINEMA PREMONITÓRIO?

Só assisti à ficção científica THX 1138, dirigida por George Lucas em 1971, quando entrou em cartaz na minha cidade, com dez anos de atraso. Foi num cinema de rua, como agora são chamadas as salas de exibição que não ficam plantadas em shopping centers – na época, o que não havia em Curitiba eram shopping centers! Apesar do visual apurado, o filme me pareceu preso em uma distopia temporal: trazia uma concepção futurista, mas mostrava traquitanas tecnológicas com design menos arrojado do que vi em Guerra nas Estrelas. Não fiquei empolgado com o ritmo arrastado, mas guardei na memória a história perturbadora das pessoas desumanizadas, contabilizadas como números e mantidas vivas com o único propósito de servir à coletividade. Fiquei com receio de que o filme pudesse trazer algum sentido... premonitório.
        Então, zapeando pelos canais da TV por assinatura, me deparei novamente com THX 1138, desta vez com um atraso de 52 anos! Foi uma experiência reveladora. A uma distância mais segura dos modismos estéticos, pude perceber que seu visual é, sim, apuradíssimo. As traquitanas tecnológicas são plausíveis e a história que conta continua perturbadora. O filme ainda não perdeu o sentido premonitório! Parece beber na fonte de romances como Admirável Mundo Novo, escrito por Aldous Huxley em 1932 e 1984, escrito por George Orwell em 1949. Entretanto, com uma concepção audiovisual brilhante, é uma obra eminentemente cinematográfica.
        A realidade que conhecemos em THX 1138 é deprimente. As pessoas vivem enclausuradas no subsolo, movimentando-se como gado a caminho do abate. Um gado uniformizado de branco, com a cabeça raspada, para dar a impressão de assepsia e higienização. Homens e mulheres se confundem, porque compartilham o mesmo visual. Não podem fazer sexo, não podem se reproduzir, nem se organizar em famílias. São postos aos pares, obrigados a viver em moradias minúsculas, vivendo um cotidiano enfadonho onde a TV de imagens holográficas oferece a única opção de entretenimento. As tensões, as frustrações, as inquietações e as instabilidades emocionais são controladas pelo uso obrigatório de drogas. O estado, invisível aos olhos desatentos da população, controla a tudo por meio de um aparato tecnológico de vigilância onisciente. E as massas são pastoradas por androides policiais, que detém o monopólio da violência. Como disse, é deprimente! Mas antes de continuar, vamos examinar a sinopse:
        O filme conta a história de THX 1138 (Robert Duvall), que trabalha como operário na linha de montagem de uma fábrica de androides policiais. Divide a moradia com LUH 3417 (Maggie McOmie), que trabalha no sistema de vigilância, monitorando a vida dos habitantes. Os problemas de THX 1138 começam quando LUH 3417, em segredo, substitui as drogas que ele consome, alterando seu comportamento. Instável, ele passa a agir de maneira transgressora. Faz sexo com LUH 3417, sofre de náuseas e manifesta ansiedade. Para complicar, outro trabalhador do sistema de vigilância, SEN 5241 (Donald Pleasence), decide que quer se tornar seu novo parceiro de moradia. Resultado: THX 1138 tem um colapso durante o trabalho, comprometendo sua produtividade. É submetido a um tratamento medicamentoso e a terapias heterodoxas, para ser finalmente processado, julgado e condenado à prisão, num processo longo, que se confunde com um permanente estado de delírio. A única salvação de THX 1138 será a fuga, mas como isso será possível vivendo em um sistema totalitário e absoluto?
        A ideia para o filme THX 1138 nasceu quando George Lucas estava no curso de cinema e desenvolveu, em parceria com seu colega Walter Murch, o roteiro para um curta intitulado Electronic Labyrinth: THX 1138 4EB. Mais tarde, com a ajuda do seu mentor, o já bem-sucedido cineasta Francis Ford Coppola, Lucas e Murch reescreveram o roteiro, transformando seu projeto em um longa. Coppola o produziu, para consolidar o estúdio que estava criando, o American Zoetrope. O filme foi realizado em parceria com a Warner Bros e demorou três anos para ser concluído. Foi um fracasso de bilheteria! Tudo isso aconteceu antes de George Lucas dirigir American Graffiti e antes de Coppola dirigir O Poderoso Chefão. Houve, portanto, uma volta por cima, que será melhor abordada em uma futura crônica.
        A inventividade e o preciosismo técnico que sempre marcaram a filmografia de George Lucas já estavam presentes em THX 1138. O trabalho de Walter Murch como editor de som também foi notável – ele se tornaria mais conhecido na indústria do cinema por seu trabalho como designer de som. E o filme, depois de fracassar com o grande público, tornou-se objeto de culto para muitos admiradores da ficção cientifica. Em 2004, Lucas lançou uma versão remasterizada, recuperando os quatro minutos que haviam sido cortados pelos executivos da Warner – queriam deixar o filme mais palatável para a audiência. Foi a essa versão que assisti no streaming.
        O meu reencontro com essa ficção científica pessimista, grave e ainda bastante perturbadora me colocou pensativo. Como é possível que os demônios que nos assombravam há 50 anos não tenham sido exorcizados por definitivo? Como é possível que os anseios totalitários dos coletivistas obtusos continuem pautados na agenda dos nossos políticos? Podemos não estar desfilando por aí de uniforme branco, nem com a cabeça raspada, mas certamente temos muito com o que nos preocupar. As traquitanas tecnológicas que carregamos são regidas por uma inteligência artificial onipresente e vigilante. As drogas que nos oferecem são cada vez mais tentadoras. O conceito de família vem sendo bombardeado com insistência... Só falta sermos tratados pelos nossos números, ao invés de nossos nomes. Só falta?

Resenha crítica do filme THX 1138

Ano de produção: 1971
Direção: George Lucas
Roteiro: George Lucas e Walter Murch
Elenco: Robert Duvall, Donald Pleasence, Maggie McOmie, Don Pedro Colley, Ian Wolfe, Marshall Efron, Sid Haig, John Pearce e James Wheaton

Comentários

  1. Excelente sua crônica. Assisti o filme e você foi no âmago e nas assombrações dos dias atuais. Nossos CPFs e RGs, nossos celulares e TVs nos vigiando o tempo todo nos frustram e nos angustiam como nesse filme ""ficção"? Acho que estamos sim, vivendo tudo isso. MuitoTriste.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado! Concordo quanto ao estado de vigilância que estamos vivendo. Esses algoritmos que simulam inteligência artificial estão ficando preocupantes!

      Excluir
  2. Excelente crítica! O controle absoluto que antes era denunciado como um perigo futuro agora fica cada vez mais real com o uso de tecnologias avançadas. Porém tecnologia é apenas uma ferramenta. Vemos ela sendo usada em larga escala para fins de dominação, mas também consigo enxergar uma possibilidade para nos libertarmos desses coletivistas. Hoje temos tecnologias como criptografia. Uma excelente ferramenta para burlar o sistema predatório e finalmente descentralizar o território monetário e midiático. Claro que esse avanço também é gradual, mas podemos farejar um caminho de liberdade.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Moeda e mídia! Eis aí duas frentes de batalha decisivas na luta pela liberdade. Gostei! Já consigo até imaginar enredos para bons filmes seguindo essa lógica!

      Excluir
  3. Na verdade a criptografia é uma tecnologia tão revolucionária quanto a Internet. O processo cultural é lento e isso acaba encobrindo um pouco nossa visão quanto à todas as possibilidades que essa ferramenta trás. Nos anos 80, possivelmente não conseguíriamos prever que em 2023 poderíamos criar canais no YouTube denunciando poderosos políticos e isso seria visto por uma enorme audiência, mesmo a contra gosto daqueles que sempre financiaram a grande mídia. E que suas medidas para nos calar sempre seriam mais lentas e custosas que a velocidade com que a Internet distribui essas informações. Imagine o que não podemos fazer quando de fato a população começar a usar em massa criptomoedas? Sem o monopólio da moeda e a falência de bancos centrais pelo mundo todo, como esses sistemas totalitários iriam se financiar? Quem iria pagar pelo fusil apontado diariamente em nossas cabeças?

    ResponderExcluir
  4. Gosto muito deste filme. Achei-o uma modernização da Alegoria da Caverna, do Platão. A cena final é maravilhosa; deve ter sido maravilhosa aos olhos do personagem principal. Que filme inteligente!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim, Jane! George Lucas começou no cinema com o pé direito!

      Excluir

Postar um comentário

Confira também:

Menina de Ouro: a história de Maggie Fitzgerald é real?

Tempestade Infinita: drama real de resiliência e superação

Siga a Crônica de Cinema