O Franco Atirador: filme de 1978 vencedor do Óscar

Cena do filme O Franco Atirador
O Franco Atirador: filme de Michael Cimino

AS CONSEQUÊNCIAS DEVASTADORAS DA GUERRA DO VIETNÃ

É lamentável ter que começar uma crônica sobre o filme O Franco Atirador, realizado em 1978 por Michael Cimino, falando do seu título. Sempre me incomodei com ele. Primeiro, porque a expressão franco-atirador leva hífen – sinal que nesse caso específico resistiu bravamente aos acordos ortográficos. Depois, porque a expressão está longe de manter diálogo com o título original, The Deer Hunter. Compreendo os motivos que levaram os distribuidores aqui no Brasil a evitar a mera tradução. O caçador de veados, naquele final dos anos 1970, estaria mais para título de pornochanchada e suscitaria alguns mal-entendidos. Em Portugal foram mais assertivos. Batizaram o filme de O Caçador.
        A questão é que a expressão franco-atirador remete a um soldado, com ímpeto militar, envolvido em batalhas, com sangue nos olhos. Mas o protagonista de O Franco Atirador não é nada disso. É um jovem trabalhador, que vai para a guerra junto com amigos da sua comunidade e retorna em frangalhos. Não é um filme de guerra. É sobre as consequências que ela provoca nos indivíduos que a travam. É um excelente filme, bem escrito e bem dirigido, mas realizado com doses de oportunismo.
        Em 1978, a Guerra do Vietnã acabara de terminar, com placar amplamente desfavorável aos americanos. Derrotados e ainda saturados com a enxurrada de imagens reais que a televisão insistia e exibir, eles não estavam nada confortáveis em discutir o assunto. Talvez por isso, Michael Cimino resolveu cutucar sua gente. Tomou um roteiro originalmente escrito por Louis Garfinkle e Quinn K. Redeker, intitulado The Man Who Came to Play, e o transformou no longa de três horas que arrebataria cinco estatuetas na festa do Óscar: melhor filme, melhor diretor, melhor ator coadjuvante, para Christopher Walken, melhor som e melhor edição.
        A história original era sobre um sujeito que chega à cidade de Las Vegas para participar de um jogo clandestino e mortal, que envolve a prática de roleta russa. O diretor aproveitou o tema como ideia central, mudando a ação para os campos de guerra vietnamitas. Talvez inspirado em clássicos da literatura que narram os dramas de amigos metidos em guerras, como Três Camaradas, de Erich Maria Remarque – o mesmo autor de Nada de Novo no Front, Michel Cimino trabalhou em parceria com seu antigo colaborador, Deric Washburn, para produzir o roteiro de O Franco Atirador. Antes de entrar em detalhes, vejamos como ficou a sinopse:
        O filme narra a história de Michael Vronsky (Robert de Niro), que vive na pequena cidade de Clairton, Pensilvânia, onde trabalha como operário numa siderúrgica, junto com seus amigos Steven (John Savage), Nick (Christopher Walken), Stanley (John Cazale), John (George Dzundza) e Axel (Chuck Aspegren). Prestes a embarcar para o Vietnã, Michael, Nick e Steven serão homenageados pela comunidade durante um evento muito especial, com feitio de rito de passagem: o casamento de Steven com Angela (Rutanya Alda). Acompanhamos os amigos desde os preparativos para a cerimônia, realizada conforme as tradições da Igreja Ortodoxa Russa, e depois, quando se esbaldam em uma festa animada, regada a muita bebida e doses de melancolia. Os três alistados seguirão para a guerra. Steven deixará a esposa e Nick deixará Linda (Meryl Streep), sua namorada. Michael levará suas habilidades de caçador e a montanha de incertezas que o destino lhe reserva.
        O roteiro de O Franco Atirador foi costurado com polêmicas. Deric Washburn garantiu que foi o único a trabalhar no processo de escrita, mas Michel Cimino afirmou que meteu o dedo em todas as cenas. O fato é que foram produzidos vários rascunhos, partindo da história inventada por Louis Garfinkle e Quinn K. Redeker. Originalmente, o protagonista era um ex-combatente cheio de fibra e coragem chamado Merle. No roteiro final, acabou sendo desmembrado em três personagens distintos, batizados de Mike, Steven e Nick. As cenas carregadas de tensão e horror envolvendo a roleta russa continuaram na essência do filme, que recebeu a indicação para o Óscar de melhor roteiro original, nominada para Cimino, Washburn, Garfinkle e Redeker.
        O grande público foi pego de surpresa. A imagem dramática de Mike apontando a arma para as próprias têmporas acabou se tornando a mais emblemática para retratar a loucura que foi a Guerra do Vietnã. Curiosamente, os jogos clandestinos de roleta russa jamais aconteceram naquele país. Combatentes americanos e os próprios vietnamitas mostraram indignação com a invencionice, mas a pecha pegou! O Franco Atirador acabou sendo marcado como um filme de guerra, embora ela não passe de um pano de fundo. É uma obra sobre como os indivíduos, os amigos, as famílias e as comunidades terminam estilhaçadas pela guerra.
        A atuação intensa do elenco estelar alavancou o sucesso do filme. Atores inspirados e comprometidos, dispostos a revirar emoções tão devastadoras quanto contraditórias, não são fáceis de arregimentar e dirigir. Michael Cimino fez isso e exerceu o controle criativo do filme com evidente talento. Usou todo o primeiro ato para flagrar seus personagens numa longa festa de casamento, revelando suas facetas mais comuns e verdadeiras, suas expectativas, seus temores e seus valores. Na hora de retratar a guerra, preferiu a representação delirante, sem se preocupar com abordagens realistas, mas tratou de usar a mesma linguagem visual que os noticiários despejavam pela TV – a mesma usada também naquele ano por Francis Ford Coppola em Apocalypse Now. Pronto! Isso transformou O Franco Atirador em um filme de guerra.
        A música de Stanley Myers, intitulada Cavatina, interpretada ao violão por John Williams, desenha a paisagem emocional do filme, mas o que causa arrepios de melancolia é a canção Can't Take My Eyes off You, de Frankie Valli, cantada em diferentes momentos pelos personagens. Michael Cimino soube usar a trilha sonora em favor do drama e recebeu o rótulo de... cineasta genial. Sua carreira teve ascensão meteórica, mas a queda foi igualmente notável. Ganhou carta branca da United Artists para realizar seu próximo filme, O Portal do Paraíso e acabou se metendo num mar de polêmicas e choques de egos. Conseguiu um fracasso estrondoso, que contribuiu definitivamente para a falência daquele estúdio.
        Eis aqui um filme que marcou época. O revisitei recentemente e fiquei feliz com a qualidade do cinema que oferece, ainda que irradie uma carga emocional devastadora.

Resenha crítica do filme O Franco Atirador

Título original: The Deer Hunter
Título em Portugal: O Caçador
Ano de produção: 1978
Direção: Michael Cimino
Roteiro: Deric Washburn
Elenco: Robert de Niro, John Cazale, John Savage, Christopher Walken, Meryl Streep, George Dzundza, Chuck Aspegren, Shirley Stoler, Rutanya Alda, Pierre Segiu, Amy Wright, Richard Kuss, Joe Grifasi e Paul D'Amato

Comentários

Confira também:

Menina de Ouro: a história de Maggie Fitzgerald é real?

Tempestade Infinita: drama real de resiliência e superação

Siga a Crônica de Cinema