O Escafandro e a Borboleta: uma história real de superação

Cena do filme O Escafandro e a Borboleta
O Escafandro e a Borboleta: filme dirigido por Julian Schnabel

SÓ O CINEMA, COM SEU PODER DE COMUNICAÇÃO, PARA FALAR DA... FALTA DE COMUNICAÇAO!

Num momento, Jean-Dominique Bauby tinha 43 anos e estava no topo da carreira. Embriagado de sucesso, vivia intensamente o glamouroso mundo da moda; no outro, viu-se confinado consigo mesmo, num corpo fulminado pelo AVC. Ainda não estava morto, mas que diferença faria se estivesse? Era uma alma incomunicável, que havia sido espanada do mundo e agora estava isolada num frasco de vidro. Contra todas as expectativas, decidiu se agarrar à vida. Que outra alternativa lhe restava? Não poderia nem mesmo conseguir uma morte verdadeira!
        Para contar essa história verídica, sobre a triste sina de um sujeito trancafiado num leito de hospital, cercado de inação por todos os lados, o diretor Julian Schnabel teve que ser inovador. Realizou O Escafandro e a Borboleta, seu filme de 2007, como um espetáculo visual deslumbrante, a partir de uma estética criativa e poética. É claro que teve a sorte de contar com um roteiro primoroso, escrito por Ronald Harwood. É claro que teve o bom senso de realizar uma obra otimista, que alcança o espectador como uma afirmação da vida e enaltece o drama de superação do protagonista.
        A história de O Escafandro e a Borboleta se passa em 1995, quando um acidente vascular cerebral vitima Jean-Dominique Bauby (Mathieu Amalric) e o faz experimentar a rara síndrome do encarceramento. Consciente, confrontado primeiro com seus medos e raivas – e depois com suas culpas e arrependimentos –, Bauby descobre que jamais poderá se comunicar novamente com o mundo; justo ele que era editor chefe da famosa revista Elle; logo ele, que exercia tanta fama e o poder; logo ele, que ainda tinha tanto por conquistar! Tudo o que lhe restou foi um olho, através do qual só conseguia enxergar a própria penúria – e que se transformaria na ferramenta de comunicação para escrever sua autobiografia.
        Apesar de todas as suas impossibilidades, Jean-Dominique Bauby escreveu um livro inteiro no hospital, intitulado O Escafandro e a Borboleta. Valeu-se de um método inusitado, criado pela fonoaudióloga que o assistia; ela recitava as letras do alfabeto, até que ele piscasse. De piscada em piscada, ela anotava as letras e reunia as palavras, depois as frases... Foram 139 páginas de um livro arrancado a fórceps e publicado em 1997 – apenas 10 dias depois do lançamento, o autor morreria, vítima de uma pneumonia.
        A tarefa de transpor um livro tão peculiar para as telas coube ao diretor Julian Schnabel. Mais conhecido pelo seu trabalho como artista plástico – ganhou destaque nos anos 1980 como expoente do neoexpressionismo americano por suas colagens gigantescas –, ele se agarrou a uma linguagem visual intensa e emocional. Faz o espectador experimentar a sensação claustrofóbica de estar no corpo inerte do protagonista, mas também deixa que ele seja visto de fora, na medida em que revela sua condição e sua personalidade. Dois recursos foram imprescindíveis nessa empreitada cinematográfica:
        Em primeiro lugar, temos o roteiro preciso escrito por Ronald Harwood – autor de talento que também escreveu O Pianista. O uso da câmera subjetiva, aos poucos substituída por planos cada vez mais reveladores e desconcertantes – sempre intercalados por flashbacks e outras construções mentais – é planejado com critério e sensibilidade, para gotejar aos poucos os acontecimentos que nos trazem o sentido da história e revelam o personagem. O roteirista percebeu que Jean-Dominique Bauby deveria ser a câmera. De fato, é câmera que pisca, para nos colocar na pele do protagonista. Ronald Harwood também foi competente em transcrever a bela narração original e nos apresentar aos médicos, enfermeiras e profissionais que se envolveram emocionalmente nessa história e foram retratados por Bauby no seu livro.
        O outro recurso usado com habilidade pelo diretor é a fotografia luminosa e sempre reveladora construída por Janusz Kaminski, o experiente colaborador de Steven Spielberg – já ganhou dois óscares de melhor fotografia, um por A Lista de Schindler e outro por O Resgate do Soldado Ryan. Aqui ele ajuda a revelar tanto o escafandro, símbolo da asfixia que leva à morte, como a borboleta, que celebra a alma livre.
        O talento de Julian Schnabel na direção de O Escafandro e a Borbolerta é inquestionável, aqui que seu ego descomunal tenha se esparramado pelos bastidores. Por esse filme ele recebeu o prêmio de direção no Festival de Cannes de 2008. O ator Mathieu Amalric, que interpreta o protagonista valendo-se de pouquíssimos recursos dramáticos, também precisa ser mencionado. Fez milagres!
        Depois de assistir a esse filme triste, mas engrandecedor, fiquei pensativo por dias. O que me veio à memória foi uma outra produção, talvez mais perturbadora e trágica: o filme Johnny Vai à Guerra, de 1971 escrito e dirigido por Dalton Trumbo. Lá o protagonista passa por uma situação similar, mas a visão amarga e pessimista do diretor nos alcança como um soco no estômago. Mas essa já é outra história, que talvez renda uma nova crônica. Quem sabe?

Resenha crítica do filme O Escafandro e a Borboleta

Ano de produção: 2007
Direção: Julian Schnabel
Roteiro: Ronald Harwood
Elenco: 
Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Marie-Josée Croze, Anne Consigny, Patrick Chesnais, Niels Arestrup, Olatz Lopez Garmendia, Jean-Pierre Cassel, Marina Hands, Max von Sydow, Isaach de Bankolé, Emma de Caunes, Jean-Philippe Ecoffey, Gérard Watkins, Nicolas Le Riche, François Delaive, Anne Alvaro, Françoise Lebrun, Zinedine Soualem, Agathe de La Fontaine, Franck Victor, Laure de Clermont, Théo Sampaio, Fiorella Campanella, Michael Wincott, Jean-Baptiste Mondino, Lenny Kravitz, Farida Khelfa

Comentários

  1. Enquanto lia seu texto ia me lembrando justamente do ilme Johnny Vai à Guerra , este claustrofóbico, qdo você o cita. Grande texto, parabéns!

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    1. Sim, é inevitável pensar nesse filme. Assisti no cinema quando jovem e fiquei com ele na memória.

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  2. Valeu por.todas as explicações wue você passa sobre as técnicas usadas no filme.mas,.não veria de novo. Uma produção respeitável.

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    1. Obrigado por acompanhar a Crônica de Cinema. Este filme exige do espectador um estado de espírito apropriado.

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  3. Excelente crônoca!! "letras reunindo as palavras, depois as frases," é assim que vc produz seus belos textos!!
    Percebo que deixei passar bons filmes, como este... agora com certeza, vou checar!!

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    1. Muito obrigado. Minhas crônicas nascem das impressões e lembranças inspiradas pelos filmes, mas antes de redigir, sempre faço uma pesquisa, afinal, quero que elas girem em torno do cinema.

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