À Espera dos Bárbaros: baseado no romance de J.M. Coetzee

Cena do filme À Espera dos Bárbaros
À Espera dos Bárbaros: filme dirigido por Ciro Guerra

DIRETO DA LITERATURA PARA AS TELAS

Nas páginas de um livro, uma história segue no ritmo ditado pelo leitor. O autor pode combinar as palavras, buscando uma sugestão de cadência na sonoridade que elas evocam. Também pode forçar a pontuação para impor as pausas e marcar a tomada de fôlego. Mas é na leitura que a obra se abre para interpretações. Já no cinema, esse pacote vem pronto. O ritmo é dado pela duração das imagens e dos sons, mas também pelos gestos dos atores, seus olhares, linguagem corporal, tom de voz, pronúncia... Lembro disso para destacar que, no filme, a criação coletiva acaba com a ditadura do autor, que perde o controle absoluto da sua história. John Maxwell Coetzee o escritor sul-africano ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2003, resistiu o quanto pôde, tentando segurar as rédeas da sua obra. Em À Espera dos Bárbaros, ele mesmo assina o roteiro para a adaptação do romance que escreveu em 1980, dirigida em 2019 pelo colombiano Ciro Guerra. O autor conseguiu a fluência e a eloquência que desejava, mas causou um estranhamento no universo dos espectadores – que é um pouco diferente do universo dos seus leitores.
        Escritor contundente, J.M. Coetzee se notabilizou por sua obra dedicada a criticar as mazelas de seu país e – de modo mais universal – a investigar a natureza violenta do ser humano e suas escolhas éticas. Em À Espera dos Bárbaros ele cria uma alegoria em torno de um império sem nome, cujos tentáculos garantem benesses aos que se encarregam da burocracia, mas colocam poder absoluto nas mãos dos que se arrogam a missão de defendê-lo. É um excelente filme, com interpretações memoráveis, narrativa envolvente e uma fotografia belíssima – parte indissociável do contexto dramático.
        O filme conta a história de um magistrado (Mark Rylance), que no final do século XIX é encarregado da administração de um lugarejo remoto, cercado por um deserto escaldante. Melancólico e compenetrado, cuida de recolher os impostos, manter a ordem, executar a burocracia, julgar as pendengas locais e estabelecer sentenças, tudo em nome de um grande império. Quando não está absorto nessa rotina aborrecida, faz-se de arqueólogo, desenterrando artefatos pelas imediações. Mas eis que chega, com imponência e soberba, o intimidador Coronel Joll (Johnny Depp) com seus estranhos óculos escuros. Revestido de autoridade policial, vem em uma missão importante: investigar a movimentação dos bárbaros que circulam pelo deserto e podem, segundo suspeita, atacar os domínios do império a qualquer momento. Especialista nas artes da tortura, o Coronel Joll não hesitará em causar dor nos inimigos para proteger o estado – o mesmo estado que vinha garantindo uma vida confortável para o magistrado, mas que agora revela sua face sórdida. A violência desnecessária e desmedida imposta pelos soldados de Joll, liderados pelo Oficial Mandel (Robert Pattinson) poderá alcançar o magistrado, que já não pode mais se omitir; especialmente depois de se envolver com a garota (Gana Bayarsaikhan) que aparece mendigando no lugarejo, com os pés quebrados depois de ter sido torturada. A despeito do que lhe possa acontecer, o magistrado se dispõe a rever seus valores e corrigir seus erros, mas o poder de decisão já não estará mais em suas mãos.
        Repleto de metáforas, À Espera dos Bárbaros segue uma narrativa linear, com cenas expositivas amparadas mais no campo visual, embora o texto seja sempre preciso. Mas não é um filme fácil. Traz à tona assuntos incômodos, revirados pelo protagonista na medida em que se confronta com uma realidade para a qual fechava os olhos. O caminho para a redenção se mostra penoso. A desesperança é gritante. A natureza totalitária do estado se impõe, mesmo quando o império alegórico – não seriam assim mesmo todos os impérios? – desmorona num salve-se quem puder.
        O produtor Michael Fitzgerald adquiriu os direitos para adaptação do romance e trabalhou no desenvolvimento do filme em estreita colaboração com o próprio J.M Coetzee. Envolveram no projeto o renomado diretor de fotografia Chris Menges, que já havia conquistado dois óscares por seu trabalho em Os Gritos do Silêncio e A Missão. Por sugestão dele, convocaram para a direção o colombiano Ciro Guerra, que abraçou a oportunidade de trabalhar com grandes nomes do cinema e realizar seu primeiro filme de alcance internacional.
        Ciro Guerra fez um trabalho notável. Ressaltou o caráter intimista da obra, mas conseguiu manter uma atmosfera épica. Ele conta que se inspirou em parte nos filmes que Akira Kurosawa realizou nos anos 1960, onde o mestre trabalha o drama dos personagens sem perder a dimensão da epopeia que abraçam. Guerra também soube se esbaldar na luz natural que inunda À Espera dos Bárbaros pelas lentes do experiente e octogenário Chris Menges. Mark Rylance, Johnny Depp e Robert Pattinson, os nomes estrelados da produção, aproveitaram a oportunidade para contracenar com atores de verdade, em locações reais e longe das áridas telas verdades que cercam os sets de filmagem das produções atuais.
        À Espera dos Bárbaros é cinema caprichado, com DNA de literatura, mas evoluído para sobreviver com tranquilidade no ambiente fílmico. Vale a pena conferir.

Resenha crítica do filme À Espera dos Bárbaros

Título original: Waiting for the Barbarians
Ano de produção: 2019
Direção: Ciro Guerra
Roteiro: J. M. Coetzee
Elenco: Mark Rylance, Johnny Depp, Robert Pattinson, Gana Bayarsaikhan, Greta Scacchi, David Dencik, Sam Reid, Harry Melling e Bill Milner

Comentários

  1. Achei magnífico.As imagens de uma beleza estonteante contrastam com o mais feio do ser humano.Os atores desfilam literatura na interpretação.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Assim é o ser humano: tem espaço de sobra para o convívio do belo com o horroroso.

      Excluir

Postar um comentário

Confira também:

Menina de Ouro: a história de Maggie Fitzgerald é real?

Tempestade Infinita: drama real de resiliência e superação

Siga a Crônica de Cinema