Coração Satânico: desconfortável e assustador

Cena do filme Coração Satânico
Coração Satânico: direção de Alan Parker

CINEMA COM SINTAXE DE PURO PESADELO

Não sei se já aconteceu com você, mas comigo é frequente: assisto a um filme tantas vezes, em partes, por inteiro, pausadamente... Até que meu objeto de estudo se esfarela em banalização. Vira massa homogênea de obviedades, que decido deixar descansando, coberta por um pano de prato, antes de levar ao forno. E fica lá, esquecida, até que decido retomar de onde parei. É quando recupero a memória e me dou conta dos motivos que me levaram a ver, rever, pausar, adiantar, voltar... Meu Deus! Como pude esquecer um filme desses? Nada tem de banal. Nem de óbvio! Coração Satânico, filme de 1987 dirigido por Alan Parker é desse tipo de filme. Gosto de saboreá-lo de tempos em tempos, aproveitando que já virou lembrança embaçada na minha mente de cinéfilo – talvez para ter a sensação de estar aproveitando uma iguaria recém-saída do forno.
        Ah, quando chegou às salas de cinema, Coração Satânico exalava novidade! Era cinema noir, quase flertando com a ditadura monocromática que caracterizava o gênero nos anos 50 e 60, mas inspirava juventude. As cenas pareciam ter saído dos comerciais de TV – ou melhor, combinavam fotografia e trilha sonora com tanta originalidade que inspiravam os publicitários e ditavam um novo padrão estético para a comunicação audiovisual. Mickey Rourke e Robert De Niro eram rostos que expressavam o estado de espírito irrequieto daqueles tempos.
        Coração Satânico é um filme de terror psicológico assustador. Tem elementos de thriller sobrenatural, que causam desconforto e provocam arrepios em sequência. O andamento descompassado, a sintaxe onírica e a atmosfera de mistério dão ao espectador a sensação de estar mergulhando em um pesadelo. O texto – primoroso – conta a já consagrada história do detetive particular entregue às bebidas, que aceita mais um caso corriqueiro e banal, mas acaba se afundando em complicações e tropeçando em perigos além da imaginação. Trata-se da adaptação do romance intitulado Falling Angel, escrito pelo americano descendente de suecos William Hjortsberg em 1978.
        Hjortsberg visitou uma diversidade de temas nos oito romances que publicou em vida, mas dado o sucesso da adaptação para o cinema, foi esse que marcou sua carreira. Consta que ele se inspirou no conto The Devil and Daniel Webster, escrito em 1936 por Stephen Vincent Benét, sobre um fazendeiro que vende a alma ao diabo e entra num embate jurídico para reavê-la, contando com as habilidades do famoso advogado do título. Em Falling Angel, Hjortsberg focalizou a ação na Nova Iorque de 1959. Carregou nas tintas do ocultismo, mas também criou um protagonista carismático e um antagonista afeito aos trambiques e vigarices. Agora, sem dar spoilers, vamos examinar a sinopse do filme.
        Coração Satânico conta a história do detetive particular Harry Angel (Mickey Rourke), contratado por um sujeito com pinta de mafioso chamado Louis Cyphre (Robert De Niro), para encontrar Johnny Favorite, um famoso cantor que desapareceu sem lhe pagar uma vultosa dívida. Na medida em que Harry Angel segue com a investigação, as pessoas que ele entrevista morrem de causas... horríveis! Quanto mais ele se aprofunda, mais tropeça em fenômenos sobrenaturais. Termina se envolvendo com a filha do cantor desaparecido, Epiphany Proudfoot (Lisa Bonet), apenas para descobrir uma verdade tão terrível que seria melhor se continuasse oculta.
        Os direitos para o cinema foram imediatamente adquiridos pela Paramount, que escalou John Frankenheimer para a direção. Como o projeto não vingou, Robert Redford comprou os direitos e anos depois os vendeu para o produtor Elliott Kastner. Foi então que sobrou para o diretor inglês Alan Parker, que já dirigiu sucessos como O Expresso da Meia-noite, Mississipi em Chamas e Fama. Ele mesmo assumiu a escrita do roteiro, consciente dos desafios que enfrentaria. Um romance policial, escrito na primeira pessoa, quase sempre resulta numa adaptação com excesso de cenas expositivas, que acabam atenuando a atmosfera sombria. Parker evitou ao máximo a narração em off e priorizou a dramatização. Transferiu a ação de Nova Iorque – quantos e quantos detetives famosos do cinema já penaram pelas ruas de Manhattan? – para uma Nova Orleans mais inusitada, pitoresca e misteriosa.
        Em relação ao romance, o roteiro de Alan Parker trouxe mudanças na caracterização dos personagens. Harry Angel carrega uma certa fleuma e uma arrogância que se sobressai. É inteligente, atraente e compenetrado em sua missão de desvendar a história complexa que vai revirando. Está aberto a acreditar no sobrenatural e tem plena confiança de que saberá enfrentá-lo. Louis Cyphre também emerge diferente nas telas. Embora sombrio e assustador, é tratado com realismo. Reconhecemos nele o mal absoluto, sempre pronto para seduzir e cooptar. Sempre disposto a pagar o preço que os incautos se atrevem a sugerir. O filme desce rapidamente às catacumbas sanguinárias do sobrenatural, mas sem perder uma gota de credibilidade.
        Curiosamente, Alan Parker preferiu não usar o título do romance. Batizou seu filme de Angel Heart. Aqui no Brasil os distribuidores seguiram na direção oposta. Adotaram o tal Coração Satânico, que entrega mais spoilers que o "coração angelical" do original em inglês. Mas isso não causou danos à obra. Além da direção segura e das atuações impecáveis, o filme carrega uma trilha sonora primorosa, composta pelo sul-africano Trevor Jones e executada com estilo pelo músico britânico Courtney Pine. A fotografia do neozelandês Michael Seresin, parceiro recorrente de Alan Paker, também é memorável e trouxe uma personalidade inconfundível para o filme.
        Bem... Chega de escrever sobre Coração Satânico. Só quero agora me sentar diante de um desses aparelhos de TV com tela gigante e degustar mais uma vez esse filme incrível. Se você o traz embaçado na memória, tanto melhor! Aproveite!

Resenha crítica do filme Coração Satânico

Título original: Angel Heart
Título em Portugal: Angel Heart - Nas Portas do Inferno
Ano de produção: 1987
Direção: Alan Parker
Roteiro: Alan Parker
Elenco: Mickey Rourke, Robert De Niro, Lisa Bonet, Charlotte Rampling, Brownie McGhee, Stocker Fontelieu, Michael Higgins, Elizabeth Whitcraft, Eliott Keener, Katheleen Wilhoite e George Buck

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