Bastardos Inglórios: Quentin Tarantino subverte a verdade em favor do bom cinema

Cena do filme Bastardos Inglórios
Bastardos Inglórios: filme de Quentin Tarantino

UMA TRILHA SONORA REPLETA DE BOAS SURPRESAS

Ludy detesta filmes violentos e não compartilha meu gosto por thrillers de guerra. Quando decido revisitar um desses filmes pela enésima vez, minha mulher se lembra que tem mais o que fazer e sai da sala. Prefere me deixar sozinho, exercendo minha obsessão de cinéfilo esmiuçador. Entre os filmes que faço questão de rever de vez em quando está Bastardos Inglórios, de 2009, escrito e dirigido por Quentin Tarantino. Tenho vários motivos para fazê-lo, mas hoje quero falar da trilha sonora que o diretor escolheu.
        Ninguém consegue ficar impassível diante de Bastardos Inglórios. É amá-lo ou odiá-lo! O senso de humor peculiar, a preferência pelas cenas violentas retratadas com requintes gráficos, a precisão dos diálogos conduzindo a narrativa afiada e ritmada... Tarantino é único. Mas confesso que o filme me pegou logo na cena inicial. Para ilustrar meu ponto, deixe-me tentar descrevê-la:
        Tela preta com o título “Capítulo 1 – Era uma vez, na França ocupada pelos nazistas”. Ouve-se a música instrumental The Green Leaves of Summer. Fade in. A trilha sonora silencia. Monsieur LaPadite aparece cortando lenha a machadadas na sua propriedade rural. O ano é 1941. Uma de suas filhas está pendurando um lençol branco no varal. Intrigada, ela afasta o pano para ver quem está se aproximando pela estrada. Um carro militar se revela ao fundo. Nesse exato momento, criando um clima de expectativa e suspense, ouve-se notas executadas ao piano que pertencem à música... Für Elise? De Ludwig Van Beethoven? É isso mesmo? Uma música romântica para criar suspense.
        Mas espere! São apenas as notas iniciais! Enquanto o automóvel nazista se aproxima, a trilha sonora ganha outros contornos. O arranjo instrumental, com a adição de cordas, sopros e percussão, nos remete à atmosfera clássica dos westerns italianos dos anos 60. Pronto! Com essa introdução, sabemos que no filme Bastardos Inglórios estamos prestes a assistir a um embate entre o bem e o mal.
        Nesses pouquíssimos segundos iniciais, o diretor entrega uma mistura impressionante de referências! Nazistas, Sergio Leone, Beethoven... É claro que depois precisei sair pelo Google afora pesquisando, para entender o caldo preparado por Tarantino. A canção ao piano não é, na verdade, Für Elise. Trata-se de The Veredict (Dopo La Condanna), composta originalmente por Ennio Morricone para o filme O Dia da Desforra, bangue-bangue espaguete de 1966, dirigido por Sergio Sollima e estrelado por Lee Van Cleef. O próprio Morricone já havia, digamos assim... sampleado Beethoven, para pôr a melodia de Für Elise em um novo contexto. Aí vem Tarantino e embaralha tudo novamente, para criar uma atmosfera cativante e provocativa.
        A partir dai, Bastardos Inglórios se desenrola com brilhantismo. Atuações marcantes, diálogos envolventes, situações tensas intercaladas com muito humor... Ao longo de mais de duas horas, Tarantino subverte a noção de realidade e modifica os fatos, criando a sua própria versão do universo. Exatamente como fez logo no início da primeira cena. E continua utilizando a música para fazer sua mágica acontecer.
        O roteiro de Bastardos Inglórios segue a técnica que Tarantino usou, por exemplo, em Pulp Fiction, o filme que o consagrou. Aqui ele também faz uma colagem de cenas aparentemente desconectadas, que vão se encaixando na medida em que o espectador vai sendo apresentado aos vários personagens. Porém, nesse filme ele conta sua história de forma linear. Começa em 1941, quando o Coronel da SS Hans Landa (Christoph Waltz) promove uma caçada a judeus na fazenda de Perrier LaPadite (Denis Ménochet). A jovem Shosanna (Mélanie Laurent) consegue escapar e três anos depois está em Paris, disfarçada de proprietária de uma sala de exibição. Ela atrai a atenção de Fredrick Zoller (Daniel Brühl), um herói nazista que se tornou a maior estrela do cinema alemão. Ele escolhe sua sala para sediar a avant première do seu último filme. Todo o III Reich estará reunido na tal noite de gala, uma oportunidade imperdível para que o primeiro-tenente Aldo Raine (Brad Pitt) e seu grupo de combatentes conhecidos como Bastardos Inglórios, acabem com todos os nazistas cretinos e ponham fim à guerra.
        Sempre que dou o play em Bastardos Inglórios me preparo para esquadrinhar os detalhes, à cata de referências e easter eggs plantados aqui e ali, nas cenas, nos diálogos e até mesmo na trilha sonora. Sempre que dou play em Bastardos Inglórios, Ludy deixa a sala. Para minha mulher, já basta tê-lo visto uma vez. Não posso condená-la. Tarantino não economiza nas tintas vermelhas e não tem piedade com os espectadores mais sensíveis.
        Ah! Se alguém tiver encontrado outra preciosidade escondida nesse filme, por favor, queira compartilhar!

Resenha crítica do filme Bastardos Inglórios

Ano de produção: 2009
Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino
Elenco: Brad Pitt, Mélanie Laurent, Christoph Waltz, Daniel Brühl, Michael Fassbender, Eli Roth, Diane Kruger, Til Schweiger, Jacky Ido, August Diehl, Gedeon Burkhard, Omar Doom, B.J. Novak, Martin Wuttke, Sylvester Groth, Mike Myers, Richard Sammel, Alexander Fehling, Sonke Mohring, Denis Menochet, Julie Dreyfus e Rod Taylor

Leia também as crônicas sobre outros filmes dirigidos por Quentin Tarantino:

Comentários

  1. Brilhante seu texto! Simples assim.

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    1. Muitíssimo obrigado, Gilsinho! Que bom que gostou. Um abraço!

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  2. Sem ser discordante, o melhor do filme foi a sua crônica. Fui dono de locadora e posso dizer é que 90% não gostou, e eu me incluo. Pitti falando com a boca cheia de batata..affff... só pessoa que idolatram mesmo!

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  3. Muito legal essa sua percepção, Walter Campos. Como dono de locadora você tem credenciais para comentar! Mas uma coisa é inegável, Tarantino suscita comentários, sempre! Tanto é que seus clientes reagiram! É como disse, é amá-lo ou odiá-lo. E quanto a parte que me toca, Walter, só posso agradecer. Procuro focalizar minhas crônicas no cinema e na arte de contar histórias. Obrigado por deixar aqui o seu incentivo. Abração!

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  4. Quando eu assisti esse filme, não tive percepção tão aguçada para tantas referências bacanas. O filme me pegou bem pelo visceral mesmo, pelo desejo que tenho de fazer com que nazistas tomem consciência da coisa ignóbil que eles são. Foi uma ótima experiência vicária.

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  5. Olá, Edu. De fato, as percepções que exponho no meu texto são muito focadas nos aspectos cinematográficos, mas é claro que também apreciei o conteúdo do filme. A forma como Tarantino nos dá a possibilidade de revanche em cimas dos nazistas é ótima. É feita com humor, mas também tem uma pitada de sadismo. Também curti!

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  6. Atenção! Meu comentário tem SPOILERS...
    Quentin Tarantino arrancou as duas melhores atuações da carreira de Christoph Waltz: uma em "Django Livre", e a outra em "Bastardos Inglórios". Seu magnetismo em tela é impressionante.
    Quanto as cenas, amo particularmente três delas: 1. A de abertura, que já estabelece a ideia do longa e nos introduz ao coronel Landa e sua visita a um fazendeiro francês, manipulando-o de maneira magistral até que o homem revele a verdade; 2. A cena do bar, com Michael Fassbender: o personagem de August Diehl ("Uma Vida Oculta") começa a suspeitar que há infiltrados entre os nazistas enquanto está sentado à mesa, e o diálogo incômodo e primorosamente arquitetado leva a culminante descoberta; 3. E a minha favorita é uma extremamente cômica: quando a personagem de Diane Kruger chega com Brad Pitt e outros dois dos bastardos no cinema onde haverá a reunião nazista. Eles se passam por italianos, pois sabiam o básico da língua. A falta de sorte é tanta que dão de cara com um coronel Landa extremamente fluente no italiano. Esta cena é impagável!

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  7. As cenas que você lembra aqui, Bruno Sol, são ótimas. Revelam o estilo, o humor e a habilidade que Tarantino tem envolver o espectador. Os diálogos são mesmo primorosos!

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