Ensaio Sobre a Cegueira: a metáfora da luz branca que está cegando a humanidade

Cena do filme Ensaio Sobre a Cegueira
Ensaio Sobre a Cegueira: filme dirigido por Fernando Meirelles

POUCOS FILMES SOBRE O APOCALIPSE MEXEM TANTO COM A NOSSA VISÃO DE MUNDO

As palavras de José Saramago impressas em seu livro Ensaio Sobre a Cegueira, de 1995, possuem dimensão gráfica. Podemos sentir o cheiro da tinta apegada ao papel. Podemos perceber o ar se deslocando sobre o nosso rosto, na medida em que desfolhamos as páginas com o polegar. Até um cego, auxiliado por um leitor, pode apreciar o texto e fruir a obra desse aclamado autor, laureado com o Nobel de Literatura em 1998. No filme Ensaio Sobre a Cegueira, realizado em 2008 por Fernando Meirelles, isso fica mais complicado.
        Transpor literatura para o cinema é uma arte complexa. O texto do livro nos chega diferente ao ser formatado para a linguagem visual, verbal e musical do filme. Há nuances que os realizadores precisam compreender para solucionar os componentes narrativos, estabelecer a caracterização dos personagens, construir uma ambientação adequada e projetar uma atmosfera em sintonia com a construção literária do autor. Nesse filme, tais desafios foram vencidos com talento e competência pelos realizadores.
        Antes de seguir com o texto é preciso que se diga: Ensaio Sobre a Cegueira não é um filme fácil. Não oferece aventura, mistério, romance nem curiosidades da ficção científica – a quem procura por isso, sugiro assistir a outro filme, do tipo Eu Sou a Lenda. Nesse aqui, só o que temos é uma agonia permanente, uma desesperança torturante e uma provocação para que encaremos a nossa própria cegueira, como indivíduos e como sociedade.
        Na cidade hipotética criada por Saramago, uma epidemia de cegueira branca se espalha por toda a população. Não é aquela cegueira escura, que decorre da ausência de luz, mas uma branca, causada pelo excesso de informação visual, que resulta na soma de todas as cores ofuscando a visão. A vida entra em colapso, as estruturas sociais desmoronam e os regramentos morais se deterioram. Acompanhamos a progressão do caos através de alguns personagens sem nome, que primeiro buscam por comida e depois apenas tentam... não morrer.
        Fernando Meirelles recebeu dos produtores o roteiro já pronto, adaptado por Don McKellar. A partir daí seu esforço foi o de transpor para o cinema as metáforas ásperas dos escritos de Saramago. Escalou os atores Julianne Moore, Mark Ruffalo, Danny Glover, Gael García Bernal e Alice Braga – entre outros – iniciando com eles e toda a equipe técnica um intenso trabalho de imersão na obra. O resultado agradou ao próprio Saramago, que teceu elogios emocionados na estreia do filme.
        No filme Ensaio Sobre a Cegueira, a fotografia esbranquiçada, lidando ora com o excesso de luz e ora com a falta dela, aliada aos planos imprecisos e eventualmente desfocados – como se tivessem sido captados por um cinegrafista... cego – foram artifícios bem utilizados pelo diretor. A música incidental, assinada pelo grupo Uakiti, liderado por Marco Antônio Guimarães, cria um universo sonoro instigante e inusitado, causando um certo estranhamento no espectador. No final, temos um filme sobre cegos voltado para os... não cegos.   
        A essa altura, falar assim da cegueira é correr o risco de escorregar na metáfora e levar um tombo vistoso, afinal, os significados e subtextos que nos bombardeiam ao longo do filme lembram que já não enxergamos a verdade diante dos nossos olhos: a vida que levamos não se sustentará da mesma forma por muito tempo. Precisa ser repensada. Foi essa reflexão, feita enquanto Ludy e eu seguimos nossos dias de confinamento por causa da epidemia do Covid19, que me levou a revisitar o filme Ensaio Sobre a Cegueira.
        Há filmes mais amenos, mas preferi falar nesse em especial, para poder tocar num assunto que me incomoda há tempos: a forma como a humanidade está caminhando em marcha à ré. Não estou falando sobre moralismos ou crenças ideológicas, mas apenas examinando a forma como nos comunicamos. O surgimento da internet está nos isolando em feudos culturais.
        A partir da segunda metade do século XX, iniciamos uma escalada tecnológica que transformou o mundo numa aldeia global – para resgatar um conceito bastante difundido nos anos 1960. Era como se todos os seres humanos do planeta estivessem sintonizados no mesmo canal de TV. Um ator de cinema ou um músico pop star era capaz de falar com todos simultaneamente. A comunicação de massa parecia gerar uma cultura unificada – pelo menos no ocidente – à qual todos tinham acesso.
        Então veio a internet e destruiu essa noção. Incendiou nossa aldeia e nos dividiu em tribos. Hoje, unanimidades como Michael Jackson e os Beatles são inimagináveis. Produtos culturais como filmes e vídeo games são criados para nichos cada vez menores, numa escalada crescente de segmentação. As redes sociais, que simulam alargar nossos contatos com o mundo, só conseguem nos aglutinar em grupos homogêneos de pensadores com a mesma mentalidade.
        Então, caro leitor, veio essa pandemia e nos isolou mais ainda, dentro de casa. Agora, olho pela janela e me imagino vivendo numa cidade estado da idade média, sem saber que novidades estão sendo gestadas nas cidades vizinhas. O problema é que não fizemos uma transição da cultura de massa para a cultura de nicho. Continuamos acreditando que as nossas verdades valem para todos, que os filmes aos quais assistimos são os melhores, que as canções que ouvimos dizem tudo, que as notícias que recebemos são as mesmas às quais todos dão ouvidos.
        Há muita luz entrando em nossos olhos e isso está nos cegando.

Resenha crítica do filme Ensaio Sobre a Cegueira

Data de produção: 2008
Direção: Fernando Meirelles
Roteiro: 
Don McKellar
Elenco: Julianne Moore, Mark Ruffalo, Danny Glover, Gael García Bernal e Alice Braga

Leia também as crônicas sobre outros filmes dirigidos por Fernando Meirelles:

Comentários

  1. Caramba... você encontrou o filme que é a metáfora dessa pandemia...

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    1. É... Saramago encontrou isso em 1995 e o Meirelles transformou em filme!!!!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Gostei muito da crônica. Penso que esse filme exemplifica de modo geral tudo que estamos vivendo.

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    1. Obrigado Priscila! É um momento estressante, que está mexendo com as nossas ansiedades. O texto de Saramago é primoroso e denso. Há muito o que refletir sobre o tema. Nessa pandemia, estamos com tempo de sobra para isso!

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  4. Excelente crônica e realmente estamos vivendo um momento triste. Concordo com você quando conclui que estamos retrocedendo, e não é só na comunicação, isso está acontecendo principalmente nos valores sociais.

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    1. Muito obrigado! Nosso mundo muda rápido e isso exige mais de nós.

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  5. Esse filme é um filme que você nunca vai esquecer a brutalidade a até que. O ser humano pode chegar Quando acontece algo e para eles é uma tragédia Mas enfim há milhares de pessoas cegas e nem por isso Ficaram tão desesperadas tão loucas pelo fato de perder o sentido da visão na verdade dentro do filme há várias metáforas o médico que era oftalmologista quando as mulheres vão trocar seus copos por comida tem uma prostituta junto E o Danny Glover que já era cego e tava gostando da situação Porque as pessoas não olhavam para ele mais como diferente e cada pessoa pode sentir a essência verdadeira de Cada um sem olhar a aparência

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    1. Usamos ver e enxergar para substituir o verbo entender. Parece que só o canal visual nos dá acesso ao mundo, mas os outros sentidos também carregam e descarregam a nossa humanidade. E como você disse, ela é brutal!!!!

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