A Corte Marcial do Navio da Revolta: ficção histórica com abordagem teatral

Cena do filme A Corte Marcial do Navio da Revolta
A Corte Marcial do Navio da Revolta: direção de Willian Friedkin

UM AUTÊNTICO DRAMA DE TRIBUNAL

Eis aqui um filme que se desenrola para muito além dos seus 109 minutos de duração. Evoca tantas conexões e desdobramentos que complica a vida deste cronista com poucos parágrafos à disposição. Exige poder de síntese! Então, vamos ser objetivos: A Corte Marcial do Navio da Revolta, dirigido em 2023 por William Friedkin é um remake, mas não se baseia no filme A Nave da Revolta, dirigido em 1954 por Edward Dmytryk e estrelado por Humphrey Bogart. Na verdade, esse novo filme é uma adaptação da peça teatral escrita em 1953 por Herman Wouk, baseada no romance que ele mesmo escreveu em 1951, intitulado The Caine Mutiny Court-Martial.
        Como cinéfilo atento, você deve ter arregalado os olhos quando leu o nome de William Friedkin. Sim, é ele mesmo! Trata-se do diretor que marcou os anos 1970 com sucessos como O Exorcista e Operação França. Para encerrar a carreia, ele decidiu filmar A Corte Marcial do Navio da Revolta como um balizador do seu virtuosismo cinematográfico. E conseguiu! Pouco depois de concluir o filme, ele morreu antes da estreia, aos 87 anos, deixando como legado um bom número de clássicos.
        Quanto a Herman Wouk, basta dizer que o autor foi considerado um... Tolstoi americano. Publicou 15 romances, a maioria dramas históricos. Escreveu The Caine Mutiny Court-Martial baseado nas experiências que viveu a bordo de um caça-minas, quando combateu na Segunda Guerra Mundial. Mas não testemunhou motim algum! Sua história é fictícia e tem como personagens um neurótico capitão Queeg, que compromete a segurança do navio e da tripulação por causa de picuinhas, um inteligente tenente Tom Keefer, que conspira como eminência parda e um impetuoso imediato tenente Steve Maryk, que toma de assalto o controle do navio e por isso amarga a tal corte marcial.
        O filme de 1954 se passa na Segunda Guerra Mundial e dramatiza os acontecimentos em alto mar, mostrando diversas sequências filmadas no navio. Já neste filme de 2023, a história fica inteiramente confinada entre as quatro paredes do tribunal. É absolutamente teatral! Vale lembrar que a peça de Wouk já havia sido adaptada anteriormente, em 1988, pelo diretor Robert Altman – aquele que assinou filmes como Nashville e M*A*S*H. Sua versão foi feita exclusivamente para a TV e ficou confinada à telinha da rede americana CBS. Seguiu o estilo improvisado que virou marca do diretor, usando um ginásio esportivo como tribunal, onde os personagens se atropelam em falas simultâneas com forte conotação política. Já o filme de Friedkin é mais sóbrio, objetivo e traz a trama para os tempos atuais. Veja como ficou a sinopse:


        A Corte Marcial do Navio da Revolta mostra o julgamento do tenente Steve Maryk (Jake Lacy), acusado de destituir o capitão Philip Francis Queeg (Kiefer Sutherland) durante uma atribulada missão no Golfo Pérsico, quando o USS Caine foi colhido por uma tempestade. Seu advogado de defesa é um relutante tenente Barney Greenwald (Jason Clarke), que deixa claro não estar confortável no papel. A promotora, tenente Challee (Monica Raymund), por outro lado, exerce a acusação com gosto. A defesa é engenhosa em tentar mostrar que Queeg não estava mentalmente apto para comandar o navio, enquanto que a acusação traz diversas testemunhas para provar que, sim, o capitão estava no gozo das faculdades mentais. Com base nos relatos, a corte comandada pelo juiz capitão Blakely (Lance Reddick) terá que decidir se Queeg é, afinal, um perigoso tirano desequilibrado ou se foi vítima de usurpadores que se amotinaram por covardia.
        O material sobre o qual o diretor trabalhou já foi testado em diferentes plateias – a peça de Wouk foi encenada diversas vezes, inclusive na Broadway em 1954, contando com um Henry Fonda no elenco. No palco, os acontecimentos não são encenados, mas narrados pelos diversos personagens envolvidos, cada um com a sua versão. Nas telas, Willian Friedkin tira vantagem disso, encontrando os enquadramentos certos, impondo movimentos para sugerir tensão e mantendo a distância apropriada de cada personagem. Os espectadores menos acostumados com a linguagem teatral por certo acharão enfadonho. Já os atentos, não sentirão falta das encenações.
        Obrigado a formar opinião e trabalhar com imagens mentais, o espectador não encontrará respostas claras em A Corte Marcial do Navio da Revolta. A fronteira entre o certo e o errado parece estar em constante movimento, na medida em que os vários depoimentos vão sendo apresentados. O diretor prefere nos deixar decidir por conta própria, enquanto desmonta os estereótipos de bons e maus, que vão sendo postos no tabuleiro. Se o capitão Queeg tem motivos de sobra para se portar com dignidade, também expõe a sua fragilidade na medida em que seus erros são revelados. Os amotinados, cobertos de razão, também deixam escapar o viés manipulador.


        O que vemos com indiscutível clareza são as ótimas interpretações de Kiefer Sutherland e de Jason Clarke. O primeiro faz um capitão Queeg multifacetado, inteligente e senhor de suas competências, mas que vai se desmontando sob pressão. O segundo faz um advogado de defesa compenetrado e estratégico, mas ciente de para onde aponta o norte moral nessa história. Ambos tiveram a oportunidade de trabalhar um texto primoroso, com as linhas de diálogo precisas escritas por Friedkin.
        O diretor foi astuto em atualizar a história para os nossos dias. Onde imperavam apenas os homens, agora temos uma mulher exercendo o importante papel da acusação. Friedkin também soube manter a contundência da cena final, onde A Corte Marcial do Navio da Revolta revela a amplitude moral que vinha se esgueirando pelo subtexto ao longo do tenso julgamento. Um belo trabalho de despedida de um dos grandes nomes do cinema, ainda que seus filmes de ação e de suspense venham a ser os mais lembrados.
        Ah, o ator Lance Reddick também fez do filme a sua atuação de despedida. Ele morreu poucos meses depois de Friedkin. Sua presença elevou o nível da produção!


Resenha crítica do filme A Corte Marcial do Navio da Revolta

Título original: The Caine Mutiny Court-Martial
Direção: William Friedkin
Roteiro: William Friedkin
Elenco: Kiefer Sutherland, Jason Clarke, Jake Lacy, Monica Raymund, Lewis Pullman, Jay Duplass, Tom Riley, Lance Reddick, Elizabeth Anweis, Francois Battiste, Gabe Kessler, Gina Garcia-Sharp, Stephanie Erb, Dale Dye e Denzel Johnson

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