Caminho da Liberdade: escapando do comunismo

Cena do filme Caminho da Liberdade
Caminho da Liberdade: direção de Peter Weir

UM TRIBUTO ÀS VÍTIMAS DO REGIME STALINISTA

Ouvi a palavra gulag pela primeira vez quando foi pronunciada em algum telejornal no começo dos anos 1970, quando tinha 12 ou 13 anos. Não atinei de imediato para o seu significado, mas passei anos acreditando se tratar do nome de um arquipélago na União Soviética – culpa do escritor Aleksandr Soljenítsyn, premiado com o Nobel de Literatura depois de empreender um esforço sobre-humano para se livrar da vigilância comunista e contrabandear para o ocidente o livro mais bombástico daquela década.
        Quando entrei na faculdade, descobri que a obra – um calhamaço em três volumes – conta as histórias de centenas de sobreviventes dos campos de concentração soviéticos na Sibéria, para onde eram despachados os... inimigos do povo. Jamais li Arquipélago Gulag, mas compreendi o significado trágico do seu título por meio das resenhas publicadas na imprensa: ilhas de desgraça pontilhadas por toda a gélida Sibéria, batizadas com a sigla em russo GULag, inventada por burocratas para designar os tais campos de trabalho corretivo.
        O ocidente já sabia há muito das atrocidades cometidas por trás da cortina de ferro, mas em 1956 descobriu que havia uma rota de fuga. Foi quando o veterano do exército polonês Slavomir Rawicz publicou sua autobiografia intitulada The Long Walk: The True Story of a Trek to Freedom. Ele e outros prisioneiros conseguiram fugir de um gulag em 1940, para depois empreender uma incrível jornada de mais de 6 mil quilômetros, caminhando por meses pela Sibéria, pelo deserto de Gobi e depois pelas montanhas do Himalaia, para finalmente desembocar na Índia. Tal façanha inacreditável, motivada pelo desespero em escapar do regime, exigiu bravura e determinação em sobreviver.
        O livro de Slavomir Rawicz caiu nas mãos de Keith Clarke, que atuava no segmento de documentários como roteirista, diretor e produtor, em parceria com sua esposa, Joni Levin. Ele escreveu uma adaptação para as telas e passou anos tentando vendê-la para vários estúdios e produtoras. Despertou o interesse de gente graúda, mas o projeto só vingou quando Peter Weir decidiu dirigi-lo. O diretor australiano, que tem no currículo filmes como Sociedade dos Poetas Mortos, A Testemunha e Mestre dos Mares: O Lado Mais Distante do Mundo, envolveu-se com a história e enxergou a possibilidade de realizar um filme anticomunista, voltado para o drama pessoal dos que foram injustiçados por aquele regime perverso.


        Peter Weir arregaçou as mangas e escreveu um novo tratamento para o roteiro, mas antes realizou muita pesquisa, entrevistando testemunhas e ouvindo especialistas no assunto. Em paralelo, uma equipe da BBC, que também investigava o tema dos gulags, fez uma descoberta incômoda: Slavomir Rawicz jamais fugiu da Sibéria! Na verdade, o polonês foi solto em 1942, como ficou comprovado por meio de documentos oficiais dos soviéticos. Embora a equipe da BBC também tenha descoberto evidências de que outras três pessoas realizaram uma fuga parecida e chegaram na Índia, a notícia da farsa jogou um balde de água fria nos realizadores.
        Quando soube, Peter Weir precisou repensar o projeto. Decidiu realizá-lo como uma obra de ficção, prestando tributo aos milhões que viveram no inferno dos campos de concentração soviéticos. Convencido de que uma tal caminhada de fato aconteceu, ainda que realizada por outros, mudou o título do filme e recriou os personagens com base nas inúmeras entrevistas que fez. Focalizando o drama de sobrevivência das pessoas comuns que empreenderam uma jornada impensável, fez um filme verdadeiro e fiel aos fatos, mas abandonou a autobiografia de Slavomir Rawicz.
        O protagonista de Caminho da Liberdade passou a se chamar Janusz Wieszczek (Jim Sturgess), um oficial do exército polonês acusado de espionagem. Delatado pela própria esposa submetida a tortura, ele foi condenado a 20 anos de trabalhos forçados em um gulag. Lá ele conhece a face do inferno, e também alguns prisioneiros dispostos a correr o risco da fuga: o americano Sr. Smith (Ed Harris), o assassino Valka (Colin Farrell), o artista Tomasz (Alexandru Potocean), o padre Voss (Gustaf Skarsgård), o jovem Kazik (Sebastian Urzendowsky), o contador Zoran (Dragoș Bucur) e o ator Khabarov (Mark Strong). Fugir até que se torna fácil. O problema será percorrer os milhares de quilômetros na neve, depois no calor escaldante do deserto, depois nas montanhas, nas florestas... No caminho a órfã Irena (Saoirse Ronan) se junta aos foragidos, mas o temor é que nem todos conseguirão chegar ao destino na Índia.


        O personagem americano interpretado por Ed Harris é o único do livro original que foi mantido, mas Peter Weir o construiu para ser uma composição dos cerca de 8 mil americanos que vagavam pela União Soviética naquela época, muitos foragidos da depressão econômica nos Estados Unidos. O criminoso interpretado por Colin Farrell também foi construído a partir de uma entrevista feita pelo diretor com um velho sobrevivente, onde revelou sua complicada história pessoal. Já o personagem vivido por Mark Strong, o ator que foi parar no gulag apenas por ter interpretado um aristocrata, foi baseado numa conhecida história real.
        Em Caminho da Liberdade, não acompanhamos uma história convencional sobre fuga da prisão. Nada de planos mirabolantes arquitetados à sombra, nem de carcereiros perversos em perseguições implacáveis. Trata-se de um drama de sobrevivência, onde um grupo de desesperados precisa se ajudar para suportar um desafio sobre-humano. No trajeto, cada personagem vai se revelando, trazendo à tona camadas e camadas de emoções sufocadas pela insanidade de um cenário político opressor. Já no início somos avisados de que apenas três deles conseguem chegar o seu destino, o que aumenta o clima de tensão.
        Caminho da Liberdade é um filme intenso e emocionante, filmado em locações no Marrocos e na Índia, onde os atores foram expostos aos extremos de temperatura e pressão. Para além das interpretações emocionantes, o diretor conseguiu expressar toda a provação física cobrada das pessoas em fuga, movidas pela certeza de que viver só é possível se houver liberdade.
        A história contada por Slavomir Rawicz em sua autobiografia foi uma farsa? Pouco importa! Ao menos ele conseguiu expor a podridão do regime stalinista, que triturou 20 milhões de almas naquele arquipélago de horrores no qual se transformou a Sibéria. Ao menos ele serviu de inspiração para um filme tão necessário como Caminho da Liberdade.


Resenha crítica do filme Caminho da Liberdade

Título original: The Way Back
Título em Portugal: Rumo à Liberdade
Direção: Peter Weir
Roteiro: Peter Weir e Keith Clarke
Elenco: Jim Sturgess, Ed Harris, Saoirse Ronan, Colin Farrell, Dragoș Bucur, Alexandru Potocean, Gustaf Skarsgård, Sebastian Urzendowsky e Mark Strong

Comentários

Confira também:

Menina de Ouro: a história de Maggie Fitzgerald é real?

Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo: nada importa, nem o cinema!

Siga a Crônica de Cinema