A Balada de Buster Scruggs: a mitologia do velho oeste tratada com humor inteligente

Cena do filme A Balada de Buster Scruggs
A Balada de Buster Scruggs: dirigido pelos irmãos Coen

CINEMA DE QUALIDADE MULTIPLICADO POR SEIS

Como um garoto urbano, nascido em 1960, fui criado na frente do aparelho de TV, aquele móvel imenso, que ocupava todo um canto da sala, mas tinha uma tela proporcionalmente pequena. Era dotado de um tubo de raios catódicos, que quando atiçado por uma insondável traquitana eletrônica valvulada, exibia imagens em preto-e-branco. O tubo demorava alguns segundos para... esquentar, até que a imagem ficasse clara o suficiente. E com sorte, também ficaria nítida, se as condições atmosféricas não atrapalhassem. Chuviscos e fantasmas eram a regra e acabaram se incorporando à linguagem da televisão, uma mídia ainda jovem, mas esforçada em entregar uma programação variada: desenhos, novelas, esportes, shows de auditório, seriados e... filmes!
        Foi através da TV que o cinema entrou no meu cotidiano. Porém, os filmes exibidos na telinha eram... velhos! Novidades? Só nas salas de exibição. Na maior parte do tempo, portanto, acabava assistindo aos antigos faroestes. O problema é que eles não cabiam na TV! Criado para exaltar de forma épica a conquista do oeste americano, o gênero nasceu na tela grande, irradiando cores vivas, exibindo lindas paisagens, esbanjando planos abertos...
        O velho oeste que conseguia espiar não era o mesmo que meu pai conhecia – aquele território mítico, onde indivíduos rústicos e destemidos tentavam seguir com o processo civilizatório, lutando heroicamente contra as injustiças, a selvageria e as forças da natureza. Os filmes de bangue-bangue exibidos na TV eram incompletos, encaixotados num formato claustrofóbico. Mesmo assim, conseguiram me apresentar aos conceitos básicos do gênero, estabelecidos em cânones difundidos: o cowboy rápido no gatilho, o bandido assaltante de banco, as carroças em caravana cercada por índios, os garimpeiros obcecados por ouro, as longas viagens em diligências...
        Depois de adulto, dediquei um bom tempo aos westerns, apreciando o trabalho dos que criaram, consolidaram e inovaram o gênero – de John Ford a Sergio Leone, passando por uma enorme lista de nomes importantes. Consegui, de certa forma, compreender e apreciar aquele velho oeste que existia apenas nas telas de cinema. Até que, num belo dia, me deparei com A Balada de Buster Scruggs, realizado em 2018 pelos irmãos Joel e Ethan Coen. Foi como voltar lá para o primeiro parágrafo da crônica, mas em uma realidade distópica. Conectada ao serviço de streaming, a tela da minha TV já não era em preto-e-branco. Era grande e em alta definição. Nada de fantasmas ou chuviscos. O que mandava era a nitidez e a fidelidade das cores. Ainda assim era uma TV, que agora descortinava um faroeste autêntico e por inteiro. Porém, estranhamente, vinha empacotado, apresentando aqueles mesmos conceitos básicos que assimilei na infância.
        Lindamente fotografado – Bruno Delbonnel é o artista que assina a direção de fotografia – A Balada de Buster Scruggs é uma enorme ousadia, realizada apenas porque o sobrenome dos irmãos Coen entrou como aval. Quem mais poderia propor a realização de um filme dividido em seis histórias – seis pré-produções, seis elencos, seis concepções cênicas, seis estruturas de produção... seis tudo! – ao invés de concentrar os investimentos numa única trama potencialmente mais rentável? Certamente não um cineasta novato!
        O filme tem essa aura de televisão porque é o primeiro rodado digitalmente pelos irmãos Coen, além ter sido financiado e disponibilizado pela Netflix. Trata-se de uma antologia de seis contos ambientados no velho oeste. Quatro foram escritos pelos Coen: The Ballad of Buster Scruggs, Near Algodones, Meal Ticket e The Mortal Remains. Ainda temos All Gold Canyon, escrito por Jack London e The Gal Who Got Rattled, escrito por Stewart Edward White, dois autores americanos clássicos. O roteiro adaptando os contos, assinado pelos irmãos Coen, foi concebido como um longa metragem, não como uma série de TV. Fizeram questão de contar seis histórias com começo, meio e fim. resgatando os vários elementos icônicos associados aos westerns: caubóis, garimpeiros, assaltantes, enforcamentos, índios, carroças, diligências, tiroteios... Tudo temperado com humor, drama, algumas doses de violência e muita criatividade.
        Não há espaço nesta crônica para apresentar uma sinopse de cada conto, mesmo porque seria difícil evitar os spoilers indesejados. É suficiente avisar que o elo de ligação entre eles é a morte, que está sempre rondando os personagens, em situações onde ela é capaz de chegar com facilidade. Recomendo ao cinéfilo que ainda não assistiu ao filme, que se deixe levar e aproveite as ótimas surpresas. Estará nas mãos de cineastas competentes, dedicados a exercitar um cinema da mais alta qualidade. Como sempre, os realizadores reuniram um elenco afinado e capricharam na trilha sonora. Foram mais de 800 efeitos digitais, usados com critério para facilitar a produção e ajudar a contar as histórias – não são apenas meros atrativos pirotécnicos.
        Mas quero sugerir ao leitor que preste especial atenção no recurso narrativo que os irmãos Coen usaram para dar coesão à sua antologia de contos do velhos oeste. Para deixar claro que se trata de uma transposição de linguagem – da literatura para o cinema – criaram um livro antigo, materializado num projeto gráfico impecável. Ele é apresentado logo na abertura, nos moldes daquilo que a Disney já usava em suas animações clássicas - lembrei de Pinochio, de 1940! Vemos a capa com o título, The Ballad of Buster Scruggs. O livro então é aberto e as páginas são viradas, mostrando o primeiro conto. Nos deparamos então com uma bela ilustração, executada pelo artista Gregory Manchess. Outra virada de página e chegamos ao conto, composto em uma bela tipografia. Só então mergulhamos no cinema, quando há uma fusão para as cenas do filme.
        O livro de contos entra em cena novamente, sempre na hora de fazer a transição de um conto para outro. Sempre apresentando uma bela ilustração e uma concepção tipográfica caprichada. O visual é estonteante e tudo foi executado com excelência técnica. Esse belo filme dos irmãos Coen é uma deliciosa brincadeira com a linguagem. Dos livros para o cinema, do cinema para TV, do clássico universo dos caubóis para o mundo original e pessoal desses dois ótimos contadores de histórias. Tê-lo à disposição no serviço de streaming é uma benção!

Resenha crítica do filme A Balada de Buster Scruggs

Título original: The Ballad of Buster Scruggs
Ano de produção: 2018
Direção: Joel Coen e Ethan Coen
Roteiro: Joel Coen e Ethan Coen
Elenco: Tim Blake Nelson, Willie Watson, David Krumholtz, E.E. Bell, Tom Proctor, Clancy Brown, James Franco, Stephen Root, Ralph Ineson, Jesse Luken, Liam Neeson, Harry Melling, Tom Waits, Sam Dillon, Zoe Kazan, Bill Heck, Grainger Hines, Jackamoe Buzzell, Jefferson Mays, Ethan Dubin, Tyne Daly, Brendan Gleeson, Jonjo O'Neill, Saul Rubinek e Chelcie Ross

Comentários

Confira também:

Tempestade Infinita: drama real de resiliência e superação

Menina de Ouro: a história de Maggie Fitzgerald é real?

Siga a Crônica de Cinema