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A Tabacaria: uma história fictícia, repleta de verdades

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A Tabacaria: direção de Nikolaus Leytner SOBROU CENÁRIO, FALTOU POESIA O romance Der Trafikant , escrito pelo austríaco Robert Seethaler em 2012, tornou-se um best seller. Vendeu mais de 500 mil exemplares na sua edição original em alemão. Conta uma história envolvente, sobre o amadurecimento forçado de um rapaz inocente, diante do horror que toma conta da Áustria, quando os nazistas assaltam o poder. Para desenvolver as múltiplas camadas do seu jovem protagonista, o autor inventou uma alegoria engenhosa e provocativa: construiu uma amizade entre ele e ninguém menos do que Sigmund Freud, talvez uma das mais proeminentes personalidades do seu país. Tal relacionamento é fictício, mas plausível. Suficiente para sustentar uma narrativa envolvente e sensível, que vai revelando os traços de todos os personagens enquanto eles sofrem com os desmandos do autoritarismo.           O diretor Nikolaus Leytner, também austríaco, assumiu a tarefa de verter a obra para o cinema e entregou essa adaptaç

Apocalypse Now: o pano de fundo é a insanidade!

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Apocalypse Now: filme de Francis Ford Coppola COLOCANDO O DEDO NA FERIDA Os hippies surgiram na cidade de São Francisco, nos anos 60. Eram os herdeiros dos beatniks, mas preferiam não perder tempo com intelectualidades. Eram pacifistas, gostavam de se alienar, pregavam o amor livre e se valiam do consumo de drogas para... abrir a mente. Foram pródigos em lançar slogans vazios, mas grudentos: faça amor, não faça a guerra; é proibido proibir; dê uma chance à paz... Quando o roteirista John Milius encontrou um hippie com um pin, onde leu a inscrição “Nirvana Now”, encontrou o título perfeito para o seu filme: Apocalypse Now – o exato oposto do anseio budista de alcançar a paz interior e a felicidade, pela libertação do sofrimento que chega pelos sentidos e pela realidade material. Enquanto os alienados da contracultura se passavam por bonzinhos, pregando paz e amor, os malvados que cultivavam a guerra eram os cavaleiros do caos. O bom e velho “nós contra eles”!           O filme, que ant

Posto de Combate: crônica de uma batalha real

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HOMENS COMUNS, VIVENDO UMA SITUAÇÃO EXTRAORDINÁRIA Este não é um filme de ação. É um drama de guerra, filmado como uma homenagem a soldados reais, que lutaram de verdade. Alguns morreram, outros saíram feridos e trouxeram sequelas de uma das mais difíceis batalhas no Afeganistão. Posto de Combate , dirigido por Rod Lurie em 2020, é o tipo de filme que causa arrepios nos ideólogos de plantão – aqueles que batem o pé no antiamericanismo, ainda que os inimigos da vez sejam os execráveis talibãs! Já os desavisados, que como eu tropeçam na capa desse filme no serviço de streaming e resolvem conferir, podem se decepcionar com a falta de cenas retumbantes e recheadas de efeitos especiais. Não encontrarão personagens retratados em profundidade, nem subtramas envolventes. Tudo o que acompanharão é uma espécie de crônica, que se apega à cronologia dos fatos para entregar um relato preciso do campo de batalha.           Em Posto de Combate , porém, encontrei muito mais do que dramatizações em lin

Solaris: filme de 1972 dirigido por Andrei Tarkovski

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Solaris: filme de Andrei Tarkoviski FICÇÃO CIENTÍFICA COM A MÁXIMA DENSIDADE EMOCIONAL O cineasta russo Andrei Tarkovski se dizia um escultor. A matéria-prima com a qual esculpia seus filmes era o tempo. E ele fazia isso com gosto. Seus planos longos se estendem muito mais do que as plateias ocidentais estão acostumadas. Seu cinema é para fazer pensar, ou melhor, para estimular o espectador a meditar. Exige que a audiência traga para a sala de cinema uma bagagem considerável: arte, filosofia, psicologia, história... Demanda conexões que não são todos os cinéfilos que estão dispostos a fazer. Seu filme mais ocidentalizado – e talvez por isso, aquele que dizia menos gostar – é Solaris , uma obra de ficção científica que ele realizou em 1972. O filme é conhecido por rivalizar com o Clássico de Stanley Kubrick 2001 - Uma Odisseia no Espaço , de 1968. Mas essa história de rivalidade é uma bobagem. As duas obras se tocam em apenas dois pontos: o apuro visual envolvido na sua concepção e o fa

Terra Selvagem: uma ficção inspirada em fatos

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Terra Selvagem: direção de Taylor Sheridan ELEMENTOS DE WESTERN, NUM ROTEIRO IMPECÁVEL O diretor Taylor Sheridan realizou uma façanha e tanto. Em questão de três anos teve seu nome envolvido em três ótimos filmes, que alcançaram grande sucesso nas bilheterias e na opinião dos críticos. Primeiro, como roteirista, ele emplacou em 2015 o filme Sicario: Terra de Ninguém , dirigido por Denis Villeneuve. Repetiu a dose em 2016, com A Qualquer Custo , dirigido por David Mackenzie – inclusive indicado ao Oscar de melhor roteiro original. E em 2017 o próprio Sheridan decidiu filmar um de seus roteiros, realizando o ótimo Terra Selvagem . Apesar de contar histórias bem distintas, as três produções guardam um elemento em comum: a temática violenta, que se passa em terras remotas e fora do alcance da lei e da ordem. Os cinéfilos logo identificarão, nessa espécie de trilogia, os elementos herdados do gênero western, mas perceberão que eles aparecem renovados, utilizados com originalidade e sempre e

Toscana: romantismo, gastronomia e uma fotografia deslumbrante

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Toscana: dirigido por Mahdi Avaz QUEM DISSE QUE O CINEMA NÃO COMUNICA SABORES E AROMAS? A imprensa já anunciava com insistência: uma frente fria estava chegando do sul para derrubar as temperaturas em Curitiba. Na noite em que ela finalmente deu as caras, encontrou Ludy e eu enrolados num cobertor, acomodados no sofá em frente à TV. Zapeando pelo serviço de streaming, tentávamos chegar a um acordo: um filme de ação com tiros e perseguições ou um drama denso, que mergulhasse em temas mais profundos. Então, nos deparamos com o título Toscana , dirigido em 2022 pelo dinamarquês de origem iraniana Mehdi Avaz. Minha mulher abriu um sorriso e me lançou um olhar de interrogação – estaria eu disposto a assistir a mais um filme romântico ambientado na Toscana, protagonizado por um chefe de cozinha, que provavelmente mostraria belíssimas paisagens e que abusaria das referências gastronômicas? E por que não! Apertei o play e tratamos de ser felizes!           Ludy e eu realizamos nosso sonho de c

Duna: história repleta de significados, com tempero artístico

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Duna: filme de Denis Villeneuve EXCELÊNCIA VISUAL, NUMA ABORDAGEM REALISTA Lembro que assisti ao filme Duna , dirigido em 1984 por David Lynch, em uma sala de cinema. Entrei empolgado, pois além de apreciar o gênero ficção científica, estava prestes a degustar uma produção escrita e dirigida pelo diretor cujo filme anterior havia sido O Homem Elefante . Saí frustrado. Excessivamente alegórico e preso a minúcias teatrais, o filme me pareceu... chato! Mas seu tom épico gerou um certo burburinho na mídia, o que me levou a ler o livro Duna, escrito por Frank Herbert em 1965. Confesso que meu nível de empolgação continuou baixo. Embora tenha percebido a importância da obra para o gênero – o autor foi um precursor da saga de ficção científica, como a conhecemos hoje – não me tornei um fã. Talvez estivesse anestesiado pelo impacto de Blade Runner – O Caçador de Androides , esse sim um filme que marcou a década de 1980.           O propósito dessa introdução foi o de justificar minha f

O Grande Lebowski: o filme mais engraçado dos irmãos Coen

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O Grande Lebowski: direção de Joel Coen QUAL A MELHOR RECEITA PARA FAZER COMÉDIA? O homem conta histórias desde os primórdios, algumas tristes, outras engraçadas. Para começar a encená-las, foi preciso apenas um estalo de dedos. No princípio as encenações tinham função religiosa, mas as motivações festivas se impuseram. Surgiram a tragédia e a comédia, que apesar de distintas, sempre foram faces da mesma moeda – a da dramatização. No entanto, na história das artes narrativas, logo ficou evidente que fazer rir demandava mais esforço. Ironia, sarcasmo, carisma, espontaneidade... Para o comediante, não bastava talento dramático, era preciso muito mais. Passados milênios, eles são os primeiros a admitir: não há fórmula garantida para provocar o riso. Pode-se pegar ingredientes testados e consagrados, misturá-los na sequência certa, deixá-los descansar, sovar, levá-los ao forno e caprichar na apresentação... Nada disso garante que o riso será ouvido na plateia. Os irmãos Ethan e Joel Coen s

Última Chance: um policial em constante estado de perseguição

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Última Chance: direção de Steven C. Miller QUAL É MESMO O TÍTULO DAQUELE FILME? Segunda-feira à noite, esparramado no sofá, controle remoto na mão, navegando pelos serviços de streaming à cata de entretenimento... O risco de fazer a escolha errada e terminar decepcionado é imenso. Ainda assim, sou viciado nesse jogo! Mesmo quando aposto em um filme que se releva ruim, tento tirar algum proveito, alguma lição. Última Chance , dirigido em 2019 por Steven C. Miller, tem poucos ensinamentos para oferecer no campo cinematográfico, mas faz refletir sobre o imbróglio no qual estamos nos metendo enquanto sociedade hiperconectada. Mas antes de entrar nesse mérito, vamos pôr à mesa uma sinopse, para deixar claro que se trata de uma produção repleta de cartas marcadas.           Frank Penny (Aaron Eckhart) é outro daqueles policiais duros de matar, sem um passado que lhe dê base psicológica, caráter ou moral. Tudo o que temos para caracterizá-lo é o uniforme azul e a estampa do ator que o interpr

Um Lugar Chamado Notting Hill: um bairro de Londres rouba a cena romântica

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Um Lugar Chamado Notting Hill: direção de Roger Michell É FANTASIA, MAS QUANTA AUTENTICIDADE! – Ora, me poupe! – exclama o sujeito, colocando o pronome na frente de tudo para mostrar seu descontentamento. Com tantas opções no streaming, a mulher tinha que escolher justo uma comédia romântica? Ainda por cima das antigas!           – Esse filme é tão leve... Não canso de assistir. – Ela nem desgruda o olho da tela para responder.           O sujeito faz o que precisa ser feito: pega o celular e vai para o seu canto, procurar notícias sobre esporte. Deixa a tela grande à inteira disposição da mulher, que permanece hipnotizada. Um Lugar Chamado Notting Hill , filme de 1999 dirigido por Roger Michell, tem esse efeito anestésico. É cinema assumidamente despretensioso e alienante, que desfralda com orgulho a bandeira do entretenimento, mirando sem pudor na bilheteria – uma coleção de heresias imperdoáveis na visão dos puristas, que encaram a sétima arte com mais seriedade.           Mas repar

Tempo: um mistério enrolado em questões éticas

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Tempo: filme de M. Night Shyamalan ENVELHECENDO SEM O BÔNUS DA EXPERIÊNCIA DE VIDA O que é o tempo? A tirada espirituosa de Santo Agostinho, no seu livro autobiográfico As confissões , já virou resposta clássica: “Se ninguém me pergunta, eu o sei, mas se me perguntam, e quero explicar, não sei mais nada.” A frase se popularizou, porque a maioria de nós não quer se perder com divagações. Sempre de olho no relógio, estamos mais preocupados com os compromissos a cumprir. Feito peixes que se movem sem atinar para a existência da água, seguimos com a vida, distraídos para a passagem do tempo. Segundo os físicos, ele é de uma constância implacável: não se apressa, não se cansa, não pára. Mas não é o que diz o senso comum. Quando estamos nos divertindo, o tempo voa, quando estamos na cadeira do dentista, ele se arrasta. Na medida em que o tempo flui, ficamos mais velhos. E se ficamos mais velhos, é porque acumulamos mais tempo de vida. Essa lógica cristalina vai por terra no filme Tempo , dir

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