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Direto ao Conto - 1

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SEMPRE VIGILANTE Noronha se lembrou de quando acordou da cirurgia, à qual se submetera dois anos antes, para extração da vesícula biliar – naquele instante, teve a sensação de ter sido atropelado por uma carreta desgovernada. A dor não latejava em pontos específicos. Era um alarme gritando por toda a parte. O corpo, desobediente a comandos, ameaçava levar anos para se recuperar.           – Nunca levei um tiro, mas... já entrei na faca. Sei bem o que você tá sentindo – disse, tentando mostrar empatia com o pobre vigilante, esparramado naquele leito de enfermaria lotada.           – Dói, Seu Noronha. Dói bastante... Ainda bem que eles me costuraram. Disseram que eu vou ficar de molho por três ou quatro semanas. Pelo menos a comida daqui é boa... E tem umas enfermeiras gostosas pra cara...           O vigilante tirou o sorriso do rosto quando percebeu que o filho de Noronha o encarava com os olhos arregalados. O garotinho, sentado ao lado do pai, estava assustado. Por qual motivo o chef

A Árvore da Vida: a densidade de um poema cinematográfico

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A Árvore da Vida: direção de Terrence Malick BUSCANDO UM SENTIDO ESPIRITUAL Com qual finalidade alguém clica no play e começa a assistir a um filme no serviço de streaming? Tal pergunta, feita assim, de supetão, gera uma diversidade de respostas: para passar o tempo, para se divertir, para se aprofundar em algum assunto, para aprender algo, para se emocionar... No final das contas, todas as respostas convergem para um único ponto: o objetivo é sempre fruir uma boa história. Quem se põe a assistir ao filme A Árvore da Vida , dirigido em 2011 por Terrence Malick, certamente espera acompanhar uma boa narrativa – nada mais natural para quem se depara com as fotos de Brad Pitt, Sean Penn e Jessica Chastain na capa e lê a sinopse sobre as desventuras de uma família texana na década de 1950. O problema, para os desavisados, é que o diretor é notório por seu estilo não narrativo e a história que se propõe a contar está tão entranhada nos corredores secretos da sua própria alma, que vem codific

Os Fabelmans: filmando verdades emocionais

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Os Fabelmans: direção de Steven Spielberg A VERDADE ESTÁ NO... CINEMA! O impulso de realizar um filme autobiográfico sempre apareceu para cutucar o diretor Steven Spielberg – tentação para qualquer contador de histórias contumaz. Os Fabelmans , que ele dirigiu em 2022, é finalmente essa tão aguardada obra. E nos chega com tamanha graça, vivacidade e profundidade emocional, que ouso colocá-lo entre seus filmes mais envolventes e arrebatadores.           Os cinéfilos – e a crítica cinematográfica – sempre enxergaram nos filmes de Spielberg diversos elementos reveladores de sua personalidade e de sua herança familiar. Sempre aparecem expostos nas entrelinhas dos seus roteiros e se tornaram conhecidos do público, na medida em que ele virou celebridade e se firmou como um dos maiores diretores da história do cinema. Agora, chegou o momento de Spielberg se revelar por inteiro, ousando um nível de exposição inédito.           Os Fabelmans é, sim, uma ousadia. Certamente provocou momentos int

Sangue e Ouro: uma espécie de western germânico

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Sangue e Ouro: direção de Peter Thorwarth CONTRIBUIÇÃO DOS ALEMÃES PARA O CINEMA DE AÇÃO Os filmes de bangue-bangue espaguete foram uma invenção inusitada no início dos anos 1960. Rodados na Sicília e na Espanha por diretores italianos em busca da mesma atmosfera dos westerns americanos, trouxeram um sopro de renovação para o gênero, além de toques de um humor mais... mediterrâneo. E trouxeram também a certeza de que outras nacionalidades poderiam ousar seus próprios faroestes, apropriando-se dos clichês narrativos consolidados por cineastas como Sergio Leone e seus seguidores.           Dentre todos os países, o mais improvável de tal ousadia seria a Alemanha. Não por incompetência, é claro! Seu cinema de peso e repleto de contribuições significativas para a construção da sétima arte está nítido na mente de todo cinéfilo. Mas porque é dos alemães que nos costumam chegar algumas das produções mais compenetradas. Títulos como Metrópolis , O Enigma de Kaspar Hauser e Asas do Desejo  , j

A Luta Pela Esperança: uma história incrivelmente real

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A Luta Pela Esperança: direção de Ron Howard ESTÁ MAIS PARA PAI DE FAMÍLIA DO QUE PARA PUGILISTA Minha última crônica foi sobre o lutador de boxe asqueroso e desagradável retratado por Martin Scorsese no seu excelente Touro Indomável . Para ficar no tema, decidi escrever agora sobre o seu exato oposto, o lutador de boxe bom caráter e aferrado a sólidos valores éticos, que foi nocauteado pela grande depressão econômica na década de 1930, despencou para a miséria, mas conseguiu se reerguer e conquistar o título de campeão mundial dos meio-pesados. Sua história está contada no filme A Luta Pela Esperança , dirigido em 2005 por Ron Howard.           O protagonista dessa história verdadeira e tocante é James J. Braddock, um boxeador compenetrado no ringue e pai de família dedicado fora dele. Sua trajetória de superação, que lembra um conto de fadas, rendeu-lhe o apelido de Cinderella Man, dado por um jornalista esportivo chamado Damon Runyan – o que explica o título original do filme. A dim

Touro Indomável: um clássico memorável

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Touro Indomável: direção de Martin Scorsese UM PERSONAGEM QUE NOS LEVA PARA AS CORDAS O boxeador Jake LaMotta nunca foi um sujeito agradável. Ao contrário, esbanjava mau-caratismo. Esteve na prisão, estuprou uma mulher, espancou uma vítima até quase matá-la durante um assalto, meteu-se com o crime organizado, foi casado sete vezes e bateu em todas as suas mulheres. A violência estava por toda a sua ficha corrida. Nova-iorquino nascido no Bronx, era descendente de italianos e começou no boxe profissional aos 19 anos, em 1941, tonando-se campeão mundial na categoria peso médio em 1950. Depois da aposentadoria, comprou alguns bares e virou comediante. Também foi ator e participou de vários filmes. Lançou alguns livros, entre eles Raging Bull: My Story , escrito em parceria com os jornalistas Joseph Carter e Peter Savage. Apesar da vida conturbada, virou símbolo de coragem e se tornou um herói para os apreciadores do esporte.           Sinceramente, jamais senti um pingo de empolgação em a

Atirador: ação ágil, envolvente e catártica

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Atirador: direção de Antoine Fuqua TEM COISAS QUE SÓ CONSEGUIMOS RESOLVER A BALA! Depois de um dia intenso de trabalho, são diversos os motivos que nos fazem deitar no sofá e assistir a um filme. O mais comum é a busca por diversão – que tal qual a busca pela felicidade, é sempre uma jornada individual. Porém, às vezes, levamos sorte e topamos com cinema de qualidade, aquele que surpreende e entrega mais do que mero entretenimento. Traz reflexões, provocações, dúvidas, elevação intelectual, regozijo estético... Atirador , filme de 2007 dirigido por Antoine Fuqua, definitivamente não é esse tipo de filme. Mas traz um bônus valioso: catarse!           Não me refiro ao efeito que os psicólogos adoram provocar nos seus pacientes, cutucando o inconsciente para fazer jorrar as emoções traumáticas que ficaram represadas desde a infância. A catarse aqui é justamente aquela aristotélica, que tem função purificadora e purgatória, usada desde a tragédia grega para trazer alívio ao espectador, liv

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