De Olhos Bem Fechados: uma jornada erótica, onírica e fantasiosa

Cena do filme De Olhos Bem Fechados
De Olhos Bem Fechados: direção de Stanley Kubrick

SEXO, MELANCOLIA E VAZIO EXISTENCIAL

Em vida, Stanley Kubrick permaneceu confinado ao século XX; concluiu seu último filme, De Olhos Bem Fechados, em 1999, cinco dias antes de sofrer um ataque cardíaco letal. Sua odisseia criativa, entretanto, o levou a visitar outros séculos, enquanto estabelecia os mais altos padrões de excelência para o fazer cinematográfico. Assistir ao seu filme de despedida – só os espectadores têm consciência dessa condição, já que o cineasta não dava qualquer sinal de que pretendia baixar a guarda – é também um exercício de nostalgia; ficaremos em definitivo sem seus planos geometricamente precisos, seus movimentos de câmera calculados, seus cenários minuciosos, sua iluminação controlada fóton por fóton, sua habilidade em usar a música erudita... Stanley Kubrick fez cinema para a posteridade e seus filmes ainda têm muito a dizer para os cinéfilos do século XXI.
        De Olhos Bem Fechados encontra coerência na cinematografia do diretor, já que ele fazia questão de enveredar por um gênero diferente a cada produção; dessa vez filma um drama erótico, estrelado pelo casal que na época ocupava o topo do panteão midiático de Hollywood: Tom Cruise e Nicole Kidman – fato que certamente ajudou a fazer deste o filme de maior bilheteria na carreira do cineasta. Como era de costume, Kubrick se apropriou da história que pretendia contar e exerceu o controle criativo com ímpeto ditatorial; sob sua batuta, o cinema – meio fluídico por onde se movimentam nossos impulsos voyeuristas – ganha ainda mais densidade; sexo e erotismo são abordados com uma certa sofisticação, mas disputam a tela com a melancolia e o vazio existencial dos personagens. Antes de continuar, vamos examinar a sinopse do filme:
        De Olhos Bem Fechados conta a história do Dr. Bill Harford, um bem-sucedido médico novaiorquino que sabe se relacionar com a aristocracia local. Ele e sua mulher, Alice, irradiam beleza e sensualidade para quem quiser ver, durante as festas e eventos sociais que desfrutam com evidente prazer. Bill, porém, sabe alternar rapidamente entre o papel de bon-vivant e o de médico compenetrado: quando Victor Ziegler (Sydney Pollack), o anfitrião da festa, pede ajuda para salvar uma jovem modelo que acabara de sofrer os efeitos de uma overdose enquanto faziam sexo, ele atende imediatamente e resolve o problema. Seus próprios problemas, entretanto, estão apenas começando; mais tarde, Bill fica chocado quando sua mulher revela que o traiu em pensamento no verão passado, com um misterioso oficial da marinha – e que continua tentada a fazê-lo.
        O médico então embarca numa jornada noturna, na tentativa de processar a confusão de sentimentos que experimenta e que tenta a todo custo disfarçar; depois de envolver-se com outros personagens que vagam pela cidade, entra como penetra na festa sinistra organizada por uma suposta sociedade secreta, onde milionários mascarados praticam uma orgia desenfreada. Descoberto, ele agora corre perigo e não sabe ao certo quais poderão ser as consequências para ele e para outros envolvidos.
        Aqui, Stanley Kubrick não explora os elementos de mistério ou de suspense, nem confere algum sentido de urgência às decisões dos personagens; prefere manter o espectador intrigado, enquanto mantém suas lentes fechadas em personagens que se se esforçam para manter a fleuma. Embute uma vasta quantidade de significados por todos os cantos da tela e explora a estampa das estrelas de cinema que se entregam generosas aos seus desmandos como diretor cultuado. O erotismo que filma é pouco tátil e não se materializa em sensualidades óbvias; é aquele fantasioso, tão inalcançável quanto a riqueza e o poder desmedidos que estão disponíveis para poucos mortais. De Olhos Bem Fechados é um filme maduro, mas seus protagonistas estão longe disso!
        O filme é uma adaptação do romance Traumnovelle, que no Brasil recebeu o título de Breve Romance de Sonho, escrito em 1926 pelo médico austríaco Arthur Schnitzler. Conta a história do Dr. Fridolin, que passa por transformações psicológicas depois que sua mulher, Albertine, confessa ter experimentado fantasias sexuais envolvendo outro homem. Por dois dias, o médico vaga pela Viena do início do século XX; envolve-se com várias pessoas e acaba na tal festa misteriosa, repleta de sexo, gente mascarada e perigos potenciais. Por vezes comparado ao seu conterrâneo Sigmund Freud, Arthur Schnitzler construiu uma reputação de escritor habilidoso e sutil. Aqui ele cria uma atmosfera onírica, onde fantasia e realidade se confundem, enquanto aborda seu protagonista ao nível do subconsciente.
        No filme, Kubrick imprimiu com competência a mesma atmosfera onírica, mas preferiu transpor a história para a Nova Iorque da virada de século. Convocou o roteirista e escritor Frederic Raphael (ele já havia recebido um Óscar pelo roteiro de Darling: A que Amou Demais), que tratou de diluir a densidade literária do material original; trouxe também algumas explicações para a trama, talvez buscando uma resolução mais palatável ao público acostumado com as produções hollywoodianas. Para tanto, criou um personagem inexistente no romance de Schnitzler: o milionário Victor Ziegler, que funciona como um símbolo da riqueza almejada pelo Dr. Bill e faz a conexão com a misteriosa sociedade secreta.
        De Olhos Bem Fechados foi rodado na Inglaterra, exceto por algumas poucas cenas externas registradas em Nova Iorque. Stanley Kubrick recriou a atmosfera da cidade nos estúdios Pinewood, ao longo de um ano e um mês de filmagens exaustivas. Trata-se, portanto, de uma Nova Iorque superficial, estereotipada, recortada, encenada... Parecida com os personagens que acompanhamos na tela. Já o último filme do diretor não é nada disso: é meticuloso, incômodo, denso, provocativo... Fala de sexo, relacionamento, poder, ambição, vida e morte. Mostra que algumas pessoas até se atrevem a abordar temas tão profundos, mas só conseguem ficar nas aparências.

Resenha crítica do filme De Olhos Bem Fechados

Título original: Eyes Wide Shut
Ano de produção: 1999
Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick e Frederic Raphael
Elenco: Tom Cruise, Nicole Kidman, Sydney Pollack, Marie Richardson, Rade Šerbedžija, Todd Field, Vinessa Shaw, Alan Cumming, Sky du Mont, Fay Masterson, Leelee Sobieski, Thomas Gibson, Madison Eginton, Julienne Davis, Gary Goba, Abigail Good, Cate Blanchett e Leon Vitali

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